“Foda-se: o que vier, eu traço”. Foi isso que Rita Lee disse para o câncer que acabou ocasionando sua morte, no dia 8 do mês passado, aos 75 anos. Ela escreveu a frase na porta de um banheiro do hospital, como ela lembra no livro Rita Lee – Outra Autobiografia (Globo Livros / R$ 65 / 192 páginas), lançado 15 dias após a morte de uma das maiores estrelas da música brasileira.
A frase é um resumo de quem era a Rainha do Rock nacional, que já havia enfrentado batalhas tão duras quanto a doença, como a prisão em plena ditadura, enquanto estava grávida, ou as internações em hospícios. Uma mulher que xingou policiais de “cachorros” e “cafajestes” jamais iria esmorecer diante da luta contra uma doença.
Mas, além de não esmorecer, Rita foi capaz de encarar a iminência da morte com um humor impressionante e uma leveza que marca este livro que, mais que uma autobiografia, é um diário de seu tratamento.
Quem, além de Rita Lee, sabendo que o fim da vida se aproxima, seria capaz de brincar com a própria doença e colocar apelidos em seus tumores?
Rita chamava um dos tumores de Jair, em referência ao então presidente Jair Bolsonaro, a quem ela tinha ojeriza. Depois, apareceram outros e ela os batizou de 01, 02, 03…, em referência aos filhos do ex-presidente.
Leveza na alma
Encarar a morte com naturalidade é algo para que nós – especialmente os ocidentais – não estamos preparados. Por isso, temos muito a aprender com a serenidade de Rita. Embora, às vezes, mesmo fisicamente fraca, pesando 37 kg, ela substituía a serenidade pela indignação, inclusive no hospital. “Às vezes, eu segurava umas enfermeiras pelo uniforme e fazia altos discursos sobre os políticos e seus crimes contra o país”, lembra ela.
Rita Lee e Roberto de Carvalho (reprodução) |
Mas, apesar dos momentos de indignação e tristeza que ela revela no livro, o que prevalece é o tom leve da prosa de Rita, sem amargura nem revolta diante da vida. E isso está longe de ser conformismo, mas um ato de sabedoria. Jamais se conformou, porque fez tudo para vencer a doença. Mas sabia que havia um limite imposto pela natureza, algo que a ciência talvez não fosse capaz de derrotar.
Aliás, temos muito a aprender com esses mestres da música brasileira. Gilberto Gil, que já perdeu um filho por acidente de carro e agora vê a filha Preta enfrentar um câncer, disse à revista Veja nesta semana: “Temos de lidar com a ameaça da morte. Tenho dito palavras de resignação em relação àquilo que é inevitável, ao mesmo tempo que buscamos condições para a cura”.
Mas o papo tá ficando pesado e voltemos às lições de humor – e amor – que Rita nos dá no livro. Talvez a gente nunca saiba se a artista realmente encarava a iminência da morte com a leveza que ela demonstra naquelas páginas ou se isso era uma espécie de máscara que ela resolveu usar para parecer mais forte. E, também, para resguardar a família daquele sofrimento. Mas isso pouco importa, porque ela parece extremamente honesta e verdadeira no livro.
Quem, aos 75 anos, durante um tratamento contra uma doença gravíssima, seria capaz de fazer planos de aprender uma nova dança ao sair do hospital?
Depois de ter ouvido as versões dançantes que DJs haviam gravado para diversas canções dela, durante a pandemia, Rita diz que quer aprender o “quadradinho da dança da Anitta feito especialmente para a bunda ser o centro das atenções”. “Eu nunca tive uma bunda generosa, mas essa dancinha, eu tenho que tentar”, diz a nossa Rainha.
Amor por todos os lados
Mesmo sabendo dos riscos que corria, ela foi capaz de rejeitar o amor dos seus animais de estimação. Foi alertada pelos médicos que precisava manter distância deles, porque poderiam lhe transmitir fungos, diante da sua fragilidade física. E você acha que ela deu ouvidos? “Cheguei em casa e me deitei no chão para sentir o prazer de ser lambida, mordida, arranhada [pelos pets]; de rabos abanando e beijos na boca”, descreve sobre sua chegada do hospital.
Vale também a lição de amor que o casal Rita e Roberto de Carvalho nos deram. O relacionamento deles era harmonioso e Rita se derretia pelo marido, com quem foi casada por 47 anos. Não à toa, se refere a ele como “namorado” e o chama de “lorde”, depois de dizer como preparou a casa para recebê-la na volta do hospital: “Encheu a casa de flores, mudou móveis de lugar (…), encheu a despensa de guloseimas…”.
E foi também o amor à família que fez Rita aceitar se submeter ao tratamento contra o câncer, mesmo sabendo que suas chances de cura eram mínimas. “O amor dos boys Carvalho/Lee me fez optar por aceitar fazer o tratamento porque, se fosse por mim, adeus mundo cruel, na boa”. É de um desprendimento e altruísmo que nos dão inveja.
Serviço
Rita Lee – Outra Autobiografia
Ed: Globo Livros
Preço: R$ 65
192 páginas