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Escritor baiano Cyro de Mattos vence prêmio internacional Casa de Las Américas

Foto: Divulgação

Com a serenidade de quem já acumula importantes premiações, conquistadas por uma obra construída ao longo de mais de seis décadas, o escritor baiano Cyro de Mattos, 84, recebeu, em abril último, a notícia de que seu livro, Infância com bicho e pesadelo e outras histórias, foi o vencedor do Prêmio Casa de Las Américas deste ano. Trata-se de um dos mais antigos (é concedido desde 1960) prêmios literários internacionais, contemplando obras em espanhol, português, inglês e francês, desde que tenham sido escritos por autores nascidos na América Latina e Caribe. Lançado pela Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA), em parceria com a Academia de Letras da Bahia (ABL), o livro premiado integra a coleção Mestres da Literatura Baiana e reúne contos e novelas que giram em torno da infância e da vida na região cacaueira. Nascido em Itabuna, sul da Bahia, Cyro já publicou, apenas no Brasil, mais de 60 livros em diversos gêneros e recebeu, entre outros, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, o APCA e, por duas vezes, o Maestrale Marengo d’Oro, concedido pelo centro italiano Culturale Maestrale di Sestri Levante. Nesta entrevista, via e-mail, conversamos sobre maturidade, leituras, referências, influências, inteligência artificial e projetos ainda inéditos. 

  • Sabemos que essa não é a sua primeira premiação literária de relevância, mas o que o Prêmio Casa de Las Américas representa em sua trajetória?  

Por ser um prêmio de tradição e prestigiado na América Latina vai dar visibilidade ao meu legado, que tem hoje um autor de 84 anos, com mais de 60 dedicados à literatura,   65 livros pessoais publicados no Brasil e  16 no exterior, entre o conto, romance, poesia,  ensaio, crônica, literatura infantil e juvenil. 

  • Infância com Bicho e Pesadelo, o livro premiado, reúne contos e novelas e sai pela coleção Mestres da Literatura Baiana (edição da ALBA e da Academia de Letras da Bahia).  Nesse sentido, poderíamos afirmar que este reconhecimento se estende, de certo modo, à sua geração? O que particulariza sua geração de autores? 

Minha geração é a chamada Geração Revista da Bahia, que atuava com um grupo de adolescentes sonhadores nas páginas da Revista da Bahia, editada por Juarez Paraíso, nos idos 60, em Salvador. Na semana encontrávamos na livraria Civilização Brasileira, na rua Chile, Biblioteca Pública na praça Tomé de Sousa e, aos sábados, em alguns bares da Rua da Ajuda.  Éramos eu, Alberto Silva, Marcos Santarrita, Ildásio Tavares, Oleone Coelho Fontes, Adelmo Oliveira, Fernando Batinga, Olney São Paulo, Nacif Ganem e Ricardo Cruz. Tinha também Maria da Conceição Paranhos. Em nossas leituras estávamos ávidos para descobrir mundos e gente, o grupo tinha como guru Carlos Falk, leitor voraz, muito inteligente, adiante de todos. Alguns desses rapazes se tornaram mais tarde artistas da palavra escrita no circuito nacional, como Marcos Santarrita e Ildásio Tavares, e até da linguagem cinematográfica, como Olney São Paulo. Por motivos afetivos, de solidariedade e identidade cultural, esse Prêmio Literário da Casa de Las Américas, que conquistei recentemente, se estende a todos eles.  

  • A leveza inquietante e a maturidade literária foram alguns dos argumentos do júri para justificar a premiação de Infância com Bicho e Pesadelo. Como se alcança esse equilíbrio? Ele é possível de ser, afinal, alcançado por um escritor?

Literatura é forma de conhecimento da vida. Equilibra-nos entre os vazios e os medos. Expressa bem a vida com arte e engenho quanto consegue o equilíbrio entre inspiração e transpiração. É um processo constante em que entra a experimentação, faz-se necessário escrever, escrever, escrever, momento inseparável do ato de ler os grandes autores. O talento acentuado carimba no final o resultado proveitoso na jornada bonita de acontecer e ser.   

  • Pensando bem, como definimos um escritor? Como ele se faz, ao longo de décadas? Quais são seus portos, seus pontos de resistência após mais de 60 livros? 

O sapo pula, o pássaro voa, o peixe nada. Sou escritor porque escrevo. Meu porto é meu amor pela literatura, ela tem mostrado que está contente com o meu trabalho.  

  • E o leitor-escritor? Muito se fala sobre a questão do número “modesto” de leitores, em contraponto à volumosa quantidade de livros lançados a cada ano. Há, em sua opinião, uma relação de causa e consequência? Como vê essa questão? 

Verdade, escreve-se mais para o menos. Uma enxurrada de livros passa por debaixo da ponte, mas não fica. A literatura não teve antes a concorrência de outros meios, como o teatro e o cinema, hoje é e a tecnologia avançada com a linguagem visual, abrangente e instantânea. O autor tinha mais prestígio no antigamente. Não me parece é que o livro vá desaparecer em seu formato físico, sabemos onde existe o ser humano está o sonho, a questão e a incerteza, que a palavra escrita gera. A ferramenta visual da internet, que tem lá seus vícios e virtudes, agora possibilita nova leitura da vida, às vezes a narrativa ganha muito mais leitores, não se pode negar isso, às vezes traz prejuízos. Deixando fora esse tipo de competição massificada, não se pode deixar de considerar que a linguagem da arte é sempre específica e exige um leitor íntimo dos problemas estéticos, que têm a ver com a criatividade em si e a recepção do texto. 

Quem é
Cyro de Mattos, 84 anos, natural de Itabuna, dedicou mais de seis décadas de sua vida à literatura, publicando 65 livros em diversos gêneros no Brasil, e outros 16 no exterior, obtendo reconhecimento nacional e internacional por suas obras. Mora em sua terra natal e foi contemplado este ano com o Prêmio Casa de Las Américas, um dos mais importantes e antigos da América Latina.

  • Como solucionar, a seu ver, o grande enigma, o nó górdio da leitura no Brasil? 

O problema é complexo, mas não impossível de ser pelo menos atenuado. Falta seriedade e boa vontade dos governantes, dirigentes e administradores culturais. Somos um país de iletrados, sem hábito de leitura, um povo com poder aquisitivo baixo.  Sem virar a chave fica difícil mudar o quadro. É preciso projetos que solucionem primeiro problemas estruturais de nosso sistema político organizado. Há anos editoras em Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife ampliam seus catálogos editoriais fazendo com que o autor circule em outras praças. As obras desses autores são distribuídas no circuito nacional de livrarias e espaços de cultura. O autor baiano quase sempre para publicar precisa bancar o livro. Publicar um livro de literatura no Brasil é sempre difícil, mesmo quando se tem uma obra consolidada. É caso raro o do autor que reside em Salvador ou no interior baiano quando consegue publicar sua obra em editora de grande porte situada no eixo do Rio e São Paulo, com circulação nacional. Nesse conjunto de falhas falta uma política institucional pública mais arrojada para fornecer meios e fazer com que a editora baiana já no nascimento tenha assim algum suporte, estímulo para sobreviver e crescer. É preciso também uma legislação que obrigue as universidades e colégios estudarem o autor baiano, no vestibular e na sala de aula. É preciso criar novas estratégias com os programas de apoio ao livro.  A Bahia tem de sobra bons autores. Com raras exceções, falta é o editor com espírito empresarial para esse tipo de atividade econômica. E uma política pública institucional que o estimule, com mecanismos eficazes para que ele progrida. Desenvolva e fortaleça um complexo editorial abrangente e ideal. 

  • Como se descreveria, pessoalmente, como leitor? Quais autores contribuíram para a sua formação? Em que medida estes influenciaram o seu desenvolvimento como escritor, desde a estreia com Berro de Fogo, em 1966?

Já fui um leitor voraz, o que foi natural. O corpo hoje reclama, a mente hesita, mas resisto, literatura é minha crença.  O bom escritor ensina, provoca, surpreende, acrescenta.  Dostoiévski, Neruda, Bradbury, Tchecov, Kafka, Faulkner e Fernando Pessoa com os heterônimos fizeram-me ganhar cancha como escritor, deram-me visões largas sobre meu ser-estar no mundo, profundidade no fazer literário, auscultações argutas na criatividade e consciência crítica na técnica moderna de elaborar o texto. Quanto ao Berro de Fogo, contos, minha estreia em 1966, está riscado de minha bibliografia, há muitos tempos. Seu texto aconteceu com  mais defeitos do que virtudes.  Isso não aconteceu só comigo. Lygia Fagundes Telles e Assis brasil, para citar dois autores importantes, eliminaram de seu legado os livros de estreia. Guimarães Rosa foi um impacto em nossa literatura com Sagarana, seu segundo livro. Seu primeiro tirou o segundo lugar em concurso da Academia Brasileira de Letras.  Quem venceu o concurso foi Luís Jardim com Maria Perigosa, longe de ser uma obra fundamental em nossas letras. Nem todos têm a sorte de fazer a estreia literária por cima, como foi o caso de Graciliano Ramos, Clarice Lispector e José J. Veiga, por exemplo.  Cacau, O País do Carnaval e Suor, primeiros romances de Jorge Amado, são frágeis, obras de autor imaturo. Machado de Assis se torna grande na prosa de ficção a partir de Papeis Avulsos.  Considero minha estreia Os Brabos, contos e novelas, que me rendeu o Prêmio Nacional Afonso Arinos da Academia de Brasileira de Letras, em 1978, por unanimidade, numa comissão julgadora constituída por Alceu  Amoroso Lima, o relator, Herberto Sales, José Cândido de Carvalho, Adonias Filho, Afonso Arinos e Bernardo Elis. É o livro que me lançou em nível de autor nacional.

  • Falamos no início sobre maturidade literária como uma qualidade sentida em sua obra pelo júri do Casa de Las Américas, sente que a maturidade o afetou como escritor de algum modo? E os últimos acontecimentos sociais, sanitários e políticos do país? Como a realidade atinge a alma e a rotina do ficcionista?

O importante é ser pujante e denso no que se escreve, rico no que imagina e expressa, inaugurando novos sentidos. Minha literatura toca também nas feridas sociais e questões políticas. Basta ler meus livros de poesia motivados pelo rio Cachoeira, meu Cancioneiro do Cacau, história da civilização do cacau em verso, desde a conquista da terra até a decadência com a vassoura de bruxa, o romance Os Ventos Gemedores, em que a vitória pende para o lado dos despossuídos, e o romance transgressivo República Pinapá do Piripicado, condado que criei e tem a ver com o Brasil das corrupções e mazelas dos regimes políticos recentes.

  • O senhor transita com desenvoltura entre os gêneros literários, contos, romances, poemas, crônicas, ensaio e literatura infantil. Como se dá o seu processo criativo. Em geral, os formatos são definidos a partir das tramas ou, ao contrário?  

Tudo é resultado de uma experiência de vida que se expressa no sistema verbal. O assunto vivenciado ou imaginado determina a linguagem para melhor expressá-lo. Não se trata de um comportamento mecanicista, mas compulsivo, que se encaixe melhor ao que pretendo dizer no texto proposto com alma e vida. Procuro dar sempre o máximo de mim, embora saiba que sou um grão no deserto onde tudo arrisco. 

  • Uma questão central da contemporaneidade é a literatura em tempos de Inteligência Artificial, quando máquinas “pensam” e produzem textos cada vez mais subjetivos. Em sua opinião, qual o desafio dos escritores hoje? 

A Inteligência Artificial não cria sentido, é digital. O que sabe sobre o amor? O inexorável? De Deus?  Vê nascer e vê morrer sem nada poder fazer?  Se não tem a razão e a emoção como pretende decifrar o peso de tantos enigmas?  Tem seus ganhos, utilidade, mas por enquanto fico no meu canto, escrevendo o meu tanto, com espanto e encanto.

  • Quais os projetos inéditos na gaveta e/ou no prelo neste momento? 

Já está sendo preparada a tradução para o espanhol de Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias pelo Fondo Editorial da Casa de las Américas, em Havana, Cuba, com vistas à edição da obra na coleção Prêmio Literário Casa de las Américas. Assinei contrato de edição com a Almedina, matriz de Portugal e matriz Brasil, São Paulo, para dentro de cinco meses publicar o livro premiado. Aguardo o último parecer do Conselho Editorial da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, para possível publicação de O Mundo é uma criança com palhaço e lambança, infantil, capa e ilustrações de Ângelo Roberto. 

  • Ao olhar para trás, sente que valeu a pena ter insistido na literatura? 

Viver sem a literatura é impossível. Sem a emoção e a razão a vida fica uma farsa.  Se tudo é logro, melhor é sabê-lo. Viver como ficcionista e poeta é transitar com os outros no reino da palavra metamorfoseada, vestido de  nossa mentira verdadeira, que provoca  o sofredor do ver, também diverte.

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