O coração aperta quando alguém percebe que contraiu o coronavírus. Palpitações, transpiração, falta de ar são comuns. O medo de morrer pode provocar até a falsa sensação de infarto. Mas ele também pode ser verdadeiro – e causado pela própria covid-19. Foi o que aconteceu com o designer Marcos Ribeiro, 64 anos. Ele já tinha uma artéria do coração parcialmente obstruída. Depois de contrair o vírus, ela ficou totalmente bloqueada, a ponto de Marcos sofrer o início de um infarto do miocárdio. “Vou ter que tomar remédios até o fim da vida”, lamenta.
Esse não é um caso isolado. O crescimento de problemas cardiovasculares, causado pelo coronavírus, faz com que especialistas acreditem que existe hoje uma pandemia dentro da pandemia. Isso mesmo. Há um número expressivo de doenças cardiovasculares em infectados pelo coronavírus, a ponto de ser possível se comparar isso ao impacto da própria doença principal, a covid-19. Sim, parece que existe uma verdadeira pandemia cardiovascular.
Como a covid-19 é uma infecção percebida pela população apenas como respiratória, as pessoas costumam temer danos no pulmão, traqueia, brônquios. Mas pesquisas recentes revelam complicações em várias outras partes do corpo. Estudos publicados na revista britânica Nature – das Universidades Estadual Paulista (Unesp) e de Washington, nos Estados Unidos – revelam que a covid-19 tem aumentado muito o risco de doenças cardiovasculares, por exemplo. De acordo com esses estudos, as complicações vêm ocorrendo, nos EUA, 63% a mais em pacientes que contraíram o coronavírus, incluindo quem desenvolveu casos bem leves da doença.
A pesquisa parece confirmar a ideia da “pandemia dentro da pandemia”. Ela cruzou dados de 153 mil pessoas infectadas pelo vírus com milhões de outras que não o contraíram. Após um ano de observação, os acometidos pela covid-19 tiveram muito mais complicações cardiovasculares, independente da idade, comorbidades ou outro qualquer tipo de vulnerabilidade.
No caso do Brasil, o Ministério da Saúde registrou um aumento de 4% nas mortes causadas por doenças cardiovasculares, durante a pandemia, em relação a outros períodos. O fator “internação” também influencia esses números: pacientes hospitalizados por mais tempo são os que mais tendem a desenvolver problemas cardíacos, de acordo com o Ministério da Saúde.
Mas por que essa pandemia cardiovascular acontece? A principal causa é o alto potencial inflamatório do coronavírus. Tanto que os especialistas o chamam de ‘vírus de inflamação sistêmica’, que afeta diretamente os vasos sanguíneos, a circulação do corpo e seus diversos sistemas. O que quer dizer, portanto, que diferente do que diz o senso comum, o coronavírus representa muito mais do que uma doença respiratória ou uma gripe mais grave.
No sistema cardiovascular, o coronavírus tende a inflamar o miocárdio (músculo do coração), vasos sanguíneos, além de baixar a oxigenação no sangue. Tudo isso afeta diretamente o sistema cardiovascular. Ele também costuma atacar as células desse sistema, o que pode levar a tromboses, aumento de risco de infarto e acidente vascular cerebral (AVC). Além disso tudo, o vírus pode, também, danificar superfícies internas das veias e artérias, prejudicando o fluxo de sangue.
Dr. Joberto Sena, cardiologista do Hospital Santa Izabel, é um dos especialistas que legitimam a ideia de uma nova pandemia cardiovascular causada pelo coronavírus, embora pondere que os especialistas ainda vivem uma fase de observação.
“Após a covid, há um incremento significativo e há vários dados da literatura apontando para isso. Por exemplo, o aumento de AVC é em torno de 50%. De ataque isquêmico transitório (AIT), também em torno de 49% a 50%. Há um aumento das arritmias na ordem de 70%, especialmente de um tipo que é conhecido como fibrilação atrial. Aumento nos casos cardiovasculares, nos casos de infarto, então, há incrementos diversos, mesmo naqueles pacientes que tiveram covid leve”, explica Dr. Sena.
Lockdown Cardíaco
O médico aponta que as doenças cardiovasculares proliferaram, também, devido a outro fator: durante o lockdown da pandemia, muitos pacientes com doenças cardíacas deixaram de fazer o acompanhamento regular para se manter seguros em casa. Se, mesmo assim, se contaminaram, a situação cardiovascular, que já vinha mal, se agravou.
Marcos Ribeiro, designer, teve as artérias obstruídas (Foto: Acervo Pessoal) |
Nosso personagem Marcos Ribeiro, por exemplo, foi um dos que deixaram de frequentar o cardiologista durante o lockdown. Quando pegou covid-19 de forma grave, foi internado e, então, descobriu a piora na obstrução da artéria. Os médicos não souberam dizer se a causa disso foi a ausência prolongada dos consultórios, complicações surgidas pela covid ou uma combinação de ambos.
Outro fator a se questionar na chamada “pandemia cardiovascular” é até que ponto pessoas que já tinham essas complicações – ou propensão a elas – não pioraram sua condição devido ao sedentarismo que o lockdown provocou. Academias de ginástica e outros locais para a prática de atividades físicas foram fechados e, naturalmente, muitas pessoas passaram a não sair de casa, nem se exercitar.
O professor Ricardo Martins, 37 anos, ia de bicicleta para o trabalho todos os dias como exercício matinal. Com a pandemia, aboliu o exercício e sua empresa adotou o regime home office. Quando infectado pelo coronavírus, sentiu fortes dores no peito, braços e mãos dormentes, até que descobriu que estava com aterosclerose (placas de gordura nas artérias
coronárias). “Eu pensei que ia ter um infarto e morrer”, conta ele, que hoje passa bem.
Juventude Perdida
É claro que nos indivíduos com a idade avançada (mais de 65 anos), diabetes, obesidade, falta de exercícios físicos e predisposição genética, as chances de doenças cardiovasculares são maiores. Mas a revista Nature revela que mesmo jovens saudáveis, infectados não-vulneráveis, sem nenhum tipo de problema cardíaco anterior, também passaram a ter complicações cardiovasculares.
É o que diz, também, um estudo da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Os pesquisadores reuniram um grupo de controle de jovens infectados com sintomas de leves a moderados. No total, foram avaliadas 57 pessoas no estado de São Paulo, entre 20 a 40 anos, sem doenças preexistentes.
O que surpreendeu os pesquisadores foi que, mesmo sendo jovens e com covid leve, o grupo apresentou maior atividade simpática e menor atividade parassimpática quando comparados aos indivíduos não infectados. Mas o que isso significa? Que o grupo com covid-19 mostrou um aumento da frequência cardíaca e uma menor capacidade de diminuir essa frequência, ou seja, de se acalmar. É como se esses indivíduos tivessem passado a ter “um coração mais nervoso”, estressado, mesmo em repouso – e com maior dificuldade em mudar essa situação. O sistema cardiovascular sofreu um “desequilíbrio”, nas palavras dos pesquisadores. Eles afirmam que esse quadro pode provocar arritmias e outras complicações cardíacas futuras nesses jovens.
Até mesmo nas pesquisas feitas com crianças, que costumam manifestar uma covid infinitamente mais leve que nos adultos, foi observada uma incidência maior de problemas cardiovasculares. A chamada Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), doença infantil que inflama múltiplos sistemas do organismo – com destaque para o cardiovascular – foi registrada em 0,6% dos casos, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia. Dos 48 pacientes de 0-19 anos analisados, 23 deles apresentaram anormalidades no ecocardiograma.
A SIM-P é uma doença rara, mas com grau de mortalidade elevado e muito associada à covid-19. A gravidade da doença fez a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicar diretrizes sobre o seu tratamento adequado associado à covid-19 em crianças.
Em 2022, mais de 1.500 crianças e jovens foram atingidos pela SIM-P no Brasil, de acordo com o Instituto Butantan. Desses casos, 6,2% resultaram em óbito. A disfunção aguda do miocárdio e a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo são complicações mais comuns apresentadas.
Ponderações sobre a “pandemia cardiovascular”
Infectados pela covid-19, em diferentes idades e graus de vulnerabilidade, apresentaram complicações cardiovasculares não só durante, mas após o curso da doença. Mas, de acordo com a Dra. Suellen Lacerda, cardiologista da Clínica Center Cardio, é mais comum que isso se dê no auge da infecção.
“A incidência de acometimentos cardiovasculares caudados pela covid-19 se inicia durante a doença aguda mais comumente. Alguns casos raros apareceram após algumas semanas por uma reação inflamatória ou resposta imunológica”, explica.
Um artigo publicado no Journal of the American College of Cardiology: Cardiovascular Imaging mostra que as complicações a que a Dra. Suellen se refere permanecem tempos depois, ainda que entre jovens adultos. A pesquisa aponta que 7% a 17% dos pacientes jovens hospitalizados com covid-19, nos Estados Unidos, apresentaram lesão no miocárdio, complicação que se mantém por várias semanas ou mesmo meses. Essa porcentagem aumenta para 22% a 31% dos internados em unidades de terapia intensiva (UTI). A lesão miocárdica é a doença cardiovascular mais comum, atingindo de 8% a 12% dos pacientes hospitalizados, segundo a Revista Brasileira de Enfermagem.
O Dr. Joberto Sena, cardiologista do Santa Izabel, parece concordar com essas pesquisas, quando aponta um crescimento de problemas cardiovasculares em infectados de diversas idades, que tiveram alta e sobrevida superior a 30 dias. “Hospitalizados e não hospitalizados tiveram um aumento e incremento de risco de doenças cardiovasculares”, registra ele, se referindo também à fase posterior da doença.
Ainda que infectados jovens, saudáveis e com covid leve tenham sido acometidos por essas complicações, nunca é demais lembrar que hábitos saudáveis ao sistema cardiovascular podem ser decisivos também nesses casos, como lembra a Dra. Suellen.
“Sim, houve um aumento discreto do número de pacientes, tanto com acometimento cardiovascular por covid-19, quanto relacionados ao sedentarismo, maus hábitos alimentares, ganho de peso…”, observa ela, ressaltando a importância de um estilo de vida saudável.
Dr. Sena lembra, também, da importância dos exames cardiológicos. “A depender dos riscos que eles tenham e do padrão de cada paciente, merece um acompanhamento com um cardiologista. Isso pode envolver uma série de exames complementares a serem realizados, ecocardiograma, angiotomografia, eletrocardiograma… alguns envolvimentos cardiovasculares vão precisar ser vistos através de exames mais detalhados, como a ressonância e até mesmo o cateterismo cardíaco em alguns cenários específicos”, aconselha. Vale lembrar que o melhor remédio para evitar ou tratar doenças cardiovasculares é a prática de exercícios físicos regulares, alimentação balanceada, hábitos saudáveis e check-ups periódicos.