InícioExaustos: quase metade dos trabalhadores brasileiros alega estar sobrecarregada

Exaustos: quase metade dos trabalhadores brasileiros alega estar sobrecarregada

A carga horária é de oito horas. Porém, não foi uma nem duas vezes que o dia se resumiu somente a trabalho, trabalho e mais trabalho. “Quando você se afasta das pessoas que convive e deixa de realizar coisas prazerosas em decorrência da sua atividade profissional é um sinal que você não está bem. Muitas vezes, tive que dobrar para trabalhar 24, 36 ou 48h. No final, estamos exaustos. Tem momentos que pensamos em desistir”, afirma o enfermeiro Davi Apóstolo, de 40 anos, diante do excesso de demandas, jornadas exageradas e pressão constante.

“Hoje muitos colegas foram afastados por doenças físicas e psiquiátricas sem qualquer reposição dessa mão de obra. Acumulamos funções, atividades que não são da nossa competência e baixos salários, que nos levam a ter dois, três vínculos de empregos para conseguir pagar as contas. Não sou uma máquina”, complementa Davi, que chegou a repensar até mesmo se valia a pena seguir na profissão.   

Qual o seu limite? Uma pesquisa sobre questões relacionadas a benefícios, cultura e bem-estar nas empresas revelou que quase metade dos trabalhadores (43%) alegam que está sobrecarregada. O levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas (NEOP) na Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP), em parceria com as empresas Talenses e Gympass, chama atenção para outro dado que aumenta a tensão dos impactos da pandemia no mundo do trabalho: três em cada 10  entrevistados (31%) apontaram que sofrem pressão por resultados e metas.  

“A pesquisa mostra que a sobrecarga atingiu uma maior proporção de pessoas nas organizações e incluindo o ‘colaborador comum’. Isso acontece num contexto onde as pessoas estão mais psicologicamente desgastadas, inclusive, por outros motivos além do trabalho”, analisa o professor de Estratégica e Liderança, vice-diretor do NEOP-FGV e responsável pela pesquisa, Paul Ferreira.   

O estudo ouviu no início do ano 572 profissionais – inclusive, baianos – sendo que 90% deles estão empregados atualmente. Em relação ao regime de trabalho, 50% estão no formato híbrido, 28%  remoto e 22% de forma presencial. Os entrevistados se queixaram do sentimento de que precisam estar disponíveis o tempo todo (30%), falta de reconhecimento (30%), falta de empatia/apoio na liderança direta (27%), além da dificuldade de desempenho em sua plena capacidade de trabalho (22%) e ausência de flexibilidade na jornada (12%).   

Entre os transtornos mentais mais comuns identificados estão angústia, crises de pânico, irritabilidade e ansiedade. A exaustão levou 82% das pessoas a buscarem uma terapia. Mudar de emprego foi a escolha de 32% dos profissionais. A redução das horas de trabalho foi apontada por 24%  e 21% pediram demissão, mesmo sem ter a perspectiva de um novo emprego.   

“Estamos vendo várias iniciativas no mundo como o teste da semana de trabalho de quatro dias, no Reino Unido. Precisamos que as organizações olhem para o tema saúde mental com maior intencionalidade e transparência. Ou seja, restabelecer fronteiras entre a vida pessoal e o trabalho”, sugere Ferreira.

Quando questionado sobre o cenário de sobrecarga apontado na pesquisa, o Ministério da Saúde disse em nota que em 2022, a pasta iniciou um projeto de vigilância ativa em saúde do trabalhador que tem dentre seus objetivos identificar os “casos noticiados na mídia de sofrimento ou adoecimento mental”, como aqueles que levam a tentativas de suicídio nos ambientes de trabalho ou devido ao adoecimento mental do trabalho. 

Apesar das leis trabalhistas não trazerem uma previsão expressa sobre o assunto, já se tornou algo recorrente a discussão da sobrecarga de trabalho nos processos na Justiça, como pontua a advogada especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário e professora da Uniruy, Karine Baptista.

“Contudo, a imposição de sobrecargas excessivas de trabalho gera efeitos nocivos que não se restringem apenas na remuneração de horas extras. Quando se tornam habituais e impactam na vida pessoal do empregado, isso pode ocasionar sim, a imposição da indenização para o empregador”.     

Fenômeno 
A supervisora Ana Paula*, 37 anos, levanta da cama, toma café – às vezes – e já está na correria do trabalho, quase sempre sem hora para parar. “Estou trabalhando home office. As demandas existem e eu vou estendendo minha carga horária sempre com aquele receio de que no outro dia vou ter outras atividades  e isso acumular. No final, eu estou afogada em demandas”.   

Ana Paula* passa a maior parte do dia sentada. Deixou de praticar atividade física e vem apresentando algumas crises de ansiedade. “A sensação é que quanto mais eu corro para tentar resolver, as coisas se multiplicam. Engordei, nem lembro qual foi a última vez que tive um dia de lazer. Fecho os olhos para dormir, mas não consigo desacelerar. Pedi socorro, conversei com o gestor, busquei terapia, mas é muito difícil”.   

De acordo com dados do IBGE, no primeiro trimestre de 2022, a Bahia tinha 1,250 milhão de desocupados – não só a maior taxa de desocupação do país – mas também um número 12 vezes maior que a quantidade de pessoas ocupadas entre 2019/2022 (considerando os três meses iniciais). Os que têm trabalho chegam a mais 99 mil.  

No Brasil, havia 10,6 milhões de pessoas desocupadas e mais 3,750 milhões de pessoas trabalhando. Quem precisa do emprego vai mesmo pensar várias vezes antes de dizer um ‘não’ para alguma tarefa demandada pelo chefe.  

Psicóloga e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Juliana Camilo enxerga a sobrecarga no trabalho como um fenômeno multifacetado e uma questão de saúde pública. Antes mesmo da pandemia, já havia um cenário severo com relação à sobrecarga de trabalho, diante de índices de desemprego que só aumentavam e obrigavam profissionais a assumir muito mais do que podiam, se quisessem se manter empregados. No entanto, as transformações que a crise sanitária impôs acentuaram todos esses excessos além do ofício.   

“Nós falamos de um grave problema organizacional, institucional e de saúde pública. A sobrecarga vem assolando o profissional de todas as áreas desde o operacional, ao técnico até o hiper especializado e gerencial. Muitos desses trabalhadores adoecidos que viveram, talvez, violências institucionais, tiveram acidentes de trabalho e acabam indo para o sistema público e previdenciário. Ou seja, é uma disfunção macro”, diz.  

De acordo com números mais recentes do Ministério do Trabalho e Previdência, no ano passado foram concedidos no país 197.814 benefícios por incapacidade, decorrentes de transtornos mentais comportamentais. Só em 2021, 10.110 desses afastamentos foram por ansiedade. Outros 6.399 por transtornos de pânico, 20.071 por episódios depressivos e mais 16.856 por transtorno misto ansioso e depressivo. Reações ao estresse grave somaram 2.736 casos.    

Juliana Camilo chama atenção ainda para determinados casos que estão associados a situações de assédio moral. “De maneira individual, quando você vê um ou outro trabalhador com uma carga muito maior que outros, a sobrecarga passa a ser um elemento que vai endossar ou indicar um assédio moral, ao ser exigido de forma contínua que atue e produza muito mais do que e outros”.   

Conforme ressalta a professora é importante que o trabalhador saiba o que se espera dele, quais são suas metas factíveis, passíveis de serem cumpridas, assim como conhecer bem o que está ali presente no contrato de trabalho e dentro da sua atividade profissional.   

“Fui contratado para fazer o quê? A partir do momento que entendemos essa discrepância entre o real e o prescrito, estamos na hora sim de ligar o alerta e fazer os devidos enfrentamentos. Conversar com as pessoas, tentar redistribuir as tarefas, buscar a ouvidoria da empresa, o sindicato ou tentar mudar de área ou emprego”, aconselha.   

Descompressão 
Thaíse*, 34 anos, é analista de processos em uma empresa. E ultimamente, duas palavras não saem da sua cabeça antes de mesmo de começar o expediente: resultado e produtividade.

“Vivo pensando nisso diariamente. Existe também uma sobrecarga de controles, de contatos via chamadas virtuais, mensagens longas, reuniões de horas via telinhas e cobranças nas quais devemos trabalhar mais gerando menos custos, além de dar conta de gerir processos e operacionalizar atividades após redução de quadro onde a empresa investiu em tecnologia e reduziu em mão de obra”. 

A analista trabalha no formato híbrido e já se viu inúmeras vezes recebendo, após o horário de trabalho, ligações de seu gestor pedindo para checar um documento que ele acabou de enviar por e-mail. “Tudo se tornou urgente. Quando percebi que estava ficando com tempo restrito para cuidar das minhas coisas pessoais, o alerta ligou. Você acha que entrar na madrugada montando relatórios para ‘adiantar’ atividades para o dia seguinte vai te deixar menos sobrecarregada, mas, na verdade, é adiantar o máximo para no dia seguinte fazer o máximo também. E certamente não deveria ser assim”. 

A especialista em Gestão de Recursos Humanos e co-diretora de Gestão Estratégica da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-BA), Trícia Rocha, concorda que a pandemia tenha trazidos mudanças significativas sobre a maneira de se trabalhar como a consolidação do home office e maior flexibilização, por exemplo. No entanto, o abuso de demandas precarizou de forma expressiva as condições de trabalho.   

“Houve uma necessidade de novos modelos de atuação e cultura devido à crise pandêmica. Com empresas reduzindo quadro de profissionais, isso levou a um acúmulo de funções dos que permaneceram empregados. E qualquer limite que existia entre o pessoal e o profissional foi extrapolado diante de uma jornada laboral que expõe fragilidades físicas e psicossociais”.   

Nas empresas, a consequência da sobrecarga vem em forma de falta de comprometimento das equipes, baixa produtividade e engajamento, absenteísmo e taxas de turnover altíssimas (rotatividade de pessoal).  Para a professora da Unifacs e especialista em Psicologia na Segurança do Trabalho, Priscila Carvalho, o excesso de atividades urgentes, a falta de apoio da liderança e a dificuldade de impor limites exigem uma reflexão sobre o real sentido de estar naquela empresa por mais que haja o receio de sair do emprego.   

“É necessário perceber a frequência que tem extrapolado a carga horária diária e observar se consegue se desligar do trabalho ou passa qualquer tempo livre preocupado ou pensando nisso. Conhecer e impor seus limites é uma prática de autocuidado e de gestão das emoções”.   

O alívio desse sobrepeso passa pela gestão do tempo e equilíbrio da vida pessoal  e profissional, como acrescenta Priscila: “Não abra mão de praticar um exercício físico, ter uma boa higiene do sono, organizar seu tempo. Busque mais momentos próximos do convívio com amigos e familiares”, completa. 

 * Nomes fictícios, as profissionais pediram para não serem identificados na reportagem.

EFEITOS DA EXAUSTÃO

. Ansiedade/ angústia  
O professor de Estratégica e Liderança da FGV, Paul Ferreira, explica que as dinâmicas de ansiedade cresceram muito na pandemia. “Sintomas de angústia podem ser emocionais –  inquietação e sensação de estar no limite – ou físicos como, por exemplo, tremedeira, suor, dores de cabeça, problemas de estômago”.

. Crises de pânico    
É mais um dos transtornos psicológicos que aparecem nos relatos dos trabalhadores. “É uma manifestação extrema da angústia acompanhada de medo intenso da morte e outros sintomas físicos, como a taquicardia e dificuldades para respirar”. 

. Estresse  
Outro quadro  recorrente da sobrecarga: “É uma reação fisiológica automática do corpo a circunstâncias que exigem ajustes comportamentais”.

. Burnout  ou Síndrome do Esgotamento Profissional
A síndrome tem origem no ambiente de trabalho. “O estresse e o Burnout estão na mesma família, porém, a síndrome apresenta uma condição mais severa”. 

QUAL O PESO DA SUA SOBRECARGA? 

. Motivações Quais são os contextos que me tornam mais produtivo?   

. Contrato de trabalho Eu fui contratado para fazer o quê? Um outro trabalhador daria conta de tudo que estão me pedindo?  

. Autoconhecimento  O que estou fazendo comigo?  

. Rotina e saúde  O quanto tenho dormido e acordado pensando no meu trabalho? 

. Limites  Consigo estabelecer limites entre o pessoal e o profissional?

CINCO INICIATIVAS QUE FAZEM A DIFERENÇA NO AMBIENTE DE TRABALHO

1. Qualidade de vida  
A empresa precisa criar e manter um programa de qualidade de vida, com atuação de diferentes profissionais que propiciem a escuta dos trabalhadores, entre eles psicólogos, assistentes sociais e advogados. 

2. Acompanhamento  
Orientar e qualificar gestores a constantemente, estimulando uma gestão coerente, não assediosa e que propicie o desenvolvimento humano. 

3. Processos  
As metas devem ser factíveis de serem cumpridas e não números que são sobrehumanos, assim como pressões para cumprir uma meta irreal. 

4. Formação  
Investir em programas de desenvolvimento, formação continuada e carreira. 

5. Respeito às Leis Trabalhistas  
Ser fiel às legislações que amparam a relação capital-trabalho: CLT, normas regulamentadoras, acordos sindicais.

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