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Falta de Censo! Recenseadores do IBGE sofrem nos bairros nobres

Muita gente deve imaginar a dificuldade de um recenseador do Censo nas entrevistas de bairros tomadas pela violência e guerras de facções criminosas. Sim, no aspecto segurança, é um fator que contribui para o atraso na conclusão da pesquisa providencial sobre a sociedade brasileira. Contudo, a maior dificuldade de acessar a população que mora em Salvador está longe dos locais populares. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que os bairros mais atrasados no Censo estão nos ditos  nobres. Prédios de luxo com acesso restrito, síndicos que dificultam e moradores desinteressados fazem do trabalho do recenseador um exercício de paciência e arrastam a conclusão do recolhimento das informações sobre a população soteropolitana. 

No panorama dos recenseadores, os bairros campeões de pessoas que se negam a responder a pesquisa são, com base nos relatos de coleta, Graça, Vitória, Horto Florestal, Caminho das Árvores, Pituba, Itaigara, Canela, além dos perímetros de alta renda na Federação, Pituaçu, Patamares, Imbuí, Costa Azul, Boca do Rio e Stella Maris. 

No aspecto geral, o IBGE divide Salvador entre 42 regiões ou postos de coleta. Com isso, em alguns pontos podem existir bairros nobres e populares. Mas dá para ter uma noção. A maior taxa de recusa está no perímetro Amaralina II, que engloba bairros como o Itaigara, Caminho das Árvores, Costa Azul, Jardim Armação, Stiep e parte da Pituba. Nesta região, a taxa de domicílios que se recusaram a receber recenseadores chega a 6,2% do total. São 1.570 lares que não quiseram responder um questionário que leva, em média, entre 3 a 5 minutos. 

Para se ter uma ideia, o setor Amaralina I, que abraça bairros populares como Nordeste, Santa Cruz e Chapada do Rio Vermelho, que sofrem inclusive com a violência, a taxa de recusa é de 2,2%, chegando a pouco 586 lugares. Em Salvador como um todo, as negativas ficam na faixa de 3,3%. Já no estado, 1,5%. No Brasil, a média de rejeição à pesquisa nos estados é de 2,82% e esta pauta não é exclusiva do CORREIO*. Se der um Google, não será difícil ver outros veículos de imprensa de diversos estados relatando que seus recenseadores também estão com dificuldade de acessar bairros nobres. 

Este número já contabiliza as moradias que se tornaram casos críticos, onde os profissionais tentaram de tudo, mas não tiveram êxito. Segundo orientações do IBGE, os recenseadores são orientados a retornar ao domicílio pelo menos outras quatro vezes, em dias e horários diferentes, tentando inclusive encontrar outras pessoas no domicílio, que possam estar mais dispostas a responder. Inclusive, há até a possibilidade de fazer por telefone ou via internet, como no Zap, mas somente após o primeiro contato físico, pois o aparelho dos profissionais precisa da localização (por GPS) do local pesquisado. Depois deste primeiro contato, existe a possibilidade de agendar a entrevista. Não tem desculpa.

O problema é justamente este primeiro contato e os obstáculos que os profissionais do IBGE encontram pela frente nos bairros nobres. É preciso convencer o porteiro, síndico ou administradores do prédio até chegarem no morador, o que não garante sucesso, pois as recusas podem ocorrer em qualquer fase. Camila Andrade é recenseadora e alega que o censo sofre um descaso entre as classes A e B. 

“Eu trabalhei no Censo de 2010 e foi muito tranquilo. Mas essa edição do Censo realmente foi muito complicada, muito complicada mesmo. É pelo fato de que esses moradores de classe média alta pra cima não querem nos atender de jeito nenhum. Ficam nos ignorando, nos fazendo de bobo, são mal informados” desabafa a profissional. 

Camila narra com precisão sua rotina quando precisa trabalhar nos bairros mais tradicionais. A primeira coisa é se identificar ao porteiro do prédio, solicitando o contato com o síndico ou empresa responsável pela administração do lugar. “Somos barrados na portaria pelos funcionários que não têm autorização de nos passar o contato do síndico ou não sabem informar o contato da administração. Mesmo depois de me identificar com minha credencial e falar pra eles que estou ali para realizar o Censo, eles não interfonam para os moradores avisando. Alegam que só com autorização da administração ou síndico.  Sendo assim, deixo meu contato com a portaria para repassar ao síndico e/ou administração, o que infelizmente não acontece”, conta. 

Digamos que o recenseador consiga finalmente falar com o responsável do prédio. “O recado que me passam é exatamente com essas palavras: ‘diga a ela que eu não vou deixar ela falar com os moradores daqui não’. E assim eu volto totalmente desanimada, procuro meu superior, informo o ocorrido para tentarmos de outra maneira ter acesso aos moradores”. Muitas vezes, nestes casos, é preciso uma força tarefa para furar este bloqueio, com apoio de superintendentes do IBGE. 

“Após essa luta toda, vem a dificuldade em que a maioria dos moradores não querem responder ao Censo, fazem descaso, nem me atende por interfone, mandam dizer que não estão, que estão viajando, que é para retornar outro dia, outro horário… Ficam nos fazendo de bobo. E aí vai atrasando o censo como se nós tivéssemos o ano todo…”, completa. Vale lembrar que o censo deveria ter sido feito em 2020, mas acabou adiado por conta da pandemia. Só foi iniciado em agosto de 2022, com previsão de término em outubro do mesmo ano, mas acabou adiado para dezembro.  A meta é terminar ainda este mês, mas não está descartado prorrogar ainda mais. 

Toda esta lentidão gera gastos e desistências. Estima-se que a margem de profissionais que abandonam o censo chegue a 10%. Além da violência e falta de segurança, estes coletores também são prejudicados financeiramente quando os condomínios de classes A e B não colaboram. 

“Tem muita gente que prefere ir para os bairros mais populares do que nos condomínios de luxo ou bairros nobres, pois demanda muito tempo. O recenseador também ganha por produção, então imagine que a gente chega no Horto Florestal e não consegue entrar naqueles prédios, fica implorando, mendigando para fazer um trabalho importante para todos nós. Aquele tempo tentando é dinheiro perdido, pois estamos perdendo o extra por produção”, disse um recenseador que trabalha na região do Candeal e outras áreas nobres da localidade. Ele pediu anonimato.

O trabalho acaba sendo uma força tarefa. O próprio superintendente do IBGE na Bahia, André Urpia, arregaça as mangas para ajudar os recenseadores em condomínios com difícil acesso. Ele lembra que as novas portarias são centrais, como call centers, o que também tem dificultado o contato com os moradores. 

“Quando há recusa, procuramos ir até o local, conversar e tentar sensibilizar os próprios moradores. Contudo, existe uma organização bem estruturada antes. Nós fazemos uma visita, entramos em contato com o síndico ou empresas responsáveis e mostramos qual o recenseador vai fazer a pesquisa. Quando não há possibilidade, vamos para a porta do condomínio aguardar algum morador sair. Conversamos, pedimos auxílio e nos surpreendemos com moradores alegando que estavam ansiosos para nos receber, sendo que já tínhamos entrado em contato com o local. Alguns recenseadores relatam que os moradores sequer são avisados que procuramos”, conta Urpia. 

Tentamos alguns condomínios do Corredor da Vitória e Horto, sem sucesso. Apenas um síndico topou falar, sob anonimato. Ele é responsável por um prédio na Barra. “Os moradores querem privacidade, muitos dizem que não querem a visita de ninguém. Muitos acreditam que a pesquisa não é importante ou temem assaltos. Alguns toparam fazer por telefone, mas não foram todos”, disse. Síndica do Cond. Jardim Lelis Piedade, na Ribeira, Laura Bottas dá um exemplo de como se recebe recenseadores. Ela turbinou o Zap e convocou a todos para descerem no dia da visita. Mesmo assim, encontrou dificuldades, principalmente com a desinformação. 

“No meu condomínio, algumas pessoas nem lembravam mais do censo. Teve um morador que antes de responder o questionário foi pesquisar o que é o censo, a importância e se estava mesmo acontecendo”, lembra. “De 44 apartamentos, só um não respondeu. Sempre que a recenseadora tentava, ele dava uma desculpa. Alguns moradores responderam através de ligação de celular, feita pela recenseadora, com a autorização do morador, num aparelho do próprio IBGE”, relata Bottas, que já trabalhou no IBGE.

Moradora do Jardim Apipema, Marta Olivier conta que o recenseador precisou fazer as pesquisas do lado de fora do prédio. “Aqui alguns moradores não permitiram a entrada e fizeram pelo interfone. Eu deixei entrar, sentei no playground e respondi. Depois, perguntei ao vizinho que estava no play se ele poderia responder, ele pediu que ele saísse e fez pela grade”, lembra. 

Apesar da recusa, Salvador não está entre os estados com mais rejeição no Censo. Segundo o IBGE, o campeão é São Paulo, com uma taxa de 5,42% (menor que alguns bairros nobres de Salvador), seguido por Mato Grosso (3,52%), Rio de Janeiro (3,50%), Roraima (3,06%) e Espírito Santo (3,04%). A Bahia já ultrapassou 93% da população pesquisada. 

“É preciso entender a importância do Censo. Em termos de analogia, este trabalho serve como um farol na sociedade brasileira. Serve também de bússola para as políticas públicas. É nesta pesquisa que saberemos os bairros que precisam de saneamento básico, quantas vacinas precisam ser distribuídas, o perfil e a população de cada lugar, quanto, de fato, cada município precisa no aspecto verbas públicas, entre outros”, enumera André Urpia, que ainda indaga:

“Se você perguntar a cada prefeito da Bahia qual a população de cada município, no final teremos o dobro da população do estado. É preciso um trabalho como o Censo para termos estas e outras bases que mostram uma fotografia mais nítida da população brasileira”, explica. 

Para o sociólogo Leonardo Nascimento, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Ufba, a recusa de moradores das classes mais altas prejudica a sociedade como um todo, incluindo a própria turma que não contribui com o Censo. “O Censo traz uma ideia de coletividade, uma ideia de todo, de que você precisa entender o que está acontecendo no país, e uma parte da elite de Salvador é avessa a qualquer coisa que seja coletiva”, explica, acrescentando a desinformação como um pilar para esta recusa.. 

“Isso [recusa às entrevistas] é um absurdo, do ponto de vista da importância do Censo até para os próprios ricos. Por exemplo, para proteger o dinheiro deles, eles precisam saber do cálculo da inflação, ou da inflação acumulada, da taxa de mortalidade, por exemplo. Ou seja, essas pessoas não conseguem ter nem o mínimo de percepção e apreciação intelectual do mundo para considerar a importância social do Censo para eles próprios”, completa.

Para o domicílio que ainda não foi entrevistado ou resolveu dar uma chance para o recenseador, é possível ligar para o número 137, de graça e todos os dias, das 8h às 21h30. Vale lembrar que não responder o Censo pode gerar multa que chega a R$ 13 mil, de acordo com a lei nº 5.534 de 14 de novembro de 1968, que dispõe sobre a obrigatoriedade da prestação de informações estatísticas e dá outras providências.

“O IBGE até hoje não aplicou a multa por uma crença muito forte na instituição de que ela não seria necessária, pois as pessoas teriam consciência da importância e da segurança em prestar informações ao instituto nacional de estatística do país.   A informação é mais valiosa que a multa. [Porém], Isso dito, dadas as muitas dificuldades na coleta deste Censo, em diversos locais do país, o IBGE ainda não descartou totalmente aplicar a multa”, avisa André Urpia.

Urpia também não generaliza. Ele disse que muitos prédios em locais nobres tiveram uma recepção respeitosa, com síndicos facilitando a vida dos recenseadores. “Foram verdadeiros parceiraços”. O recenseador Carlos Fernando diz inclusive que bate papo com moradores, principalmente os mais velhos. “Entrevisto pessoas que muitas vezes não tem ninguém para sentar e conversar com elas. Tem entrevista que encerramos, mas o entrevistado começa a falar de histórias de vida tristes, alegres e com humor”, disse o profissional que trabalha na Vitória e Campo Grande. 

Nos bairros populares, a recepção dos moradores esbarra nas guerras de facções. “Esta é a principal dificuldade. Existem recenseadores que, se fizeram pesquisa no lado de uma facção, não podem trabalhar em outra parte, muitas vezes do mesmo bairro, por motivos óbvios. Por isso, acabamos direcionando profissionais e buscando aqueles que já moram nas localidades e possuem acesso. 

Mesmo assim, a pesquisa flui mais que nos bairros nobres, com segurança reforçada. Os bairros com menos rejeição são populares e muitas vezes com histórico de guerra entre traficantes, como Periperi/Plataforma (1,8%), Valéria (1,8%) e São Caetano III (1,5%). “Não sei se os céticos irão entender, mas ao contribuírem para o atraso do censo eles acabam trazendo sua parcela de contribuição em prejuízos para diversas ações de governo, da academia, da sociedade civil, do mercado e mesmo da imprensa livre que precisam de evidências oriundas de dados atualizados”, explica Fernando Barbalho, doutor e cientista de dados, pesquisa e ainda implementa produto para transparência no setor público brasileiro. Falta um pouco mais de censo, né?
 

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