Foram as poucas frases da canção Padroeiro de São Jorge que Gilberto Gil entoou quando se apresentou pela primeira vez em um palco. Ainda criança, a emoção de cantar no auditório do antigo colégio Marista, no Canela, foi tanta que o pequeno Gil se esqueceu da letra. Ontem, o imortal da Academia Brasileira de Letras voltou ao mesmo lugar para receber o título de Doutor Honoris Causa concedido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (Ifba) – que atualmente ocupa o espaço que já foi sede do colégio religioso.
Gil, 80, é a primeira pessoa a receber o título do Ifba e a escolha não se deu por acaso. Tido como um dos símbolos da cultura nacional, a homenagem se acumula a outras que tentam dimensionar a magnitude dele. Para além da emoção de receber mais um título, a cerimônia realizada na Reitoria do Ifba teve um gosto mais especial para o cantor. Foi naquele espaço que Gil estudou quando era jovem e começou a dar os primeiros passos como artista.
Para relembrar os momentos que viveu, ele chegou mais cedo e ficou um tempo apreciando o lugar onde cresceu. Em sua fala, fez questão de marcar a importância do local para sua trajetória:
“Eu, já manifestando naquele momento um gosto muito agudo pela música, fui convidado a fazer parte do Bando Alegre [grupo musical formado por alunos] e esse foi o palco em que eu pisei pela primeira vez”.
Por ironia do destino, quando Gil cantou novamente Padroeiro de São Jorge, agora com o título de doutor, esqueceu parte da letra. Felizmente, ontem, a plateia ajudou puxando o coro.
Entre familiares, amigos, personalidades e servidores do Ifba, o cantor foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa mais uma vez. Outros três já haviam sido concedidos pelas universidades Berklee College of Music, nos Estados Unidos; Universidade de Berklee de Valencia, na Espanha; e Universidade de Aveiro, em Portugal.
Familiares de Gil acompanharam a solenidade (Foto: Ana Lucia Albuquerque) |
A cerimônia realizada no Ifba foi conduzida pela jornalista baiana Rita Batista e contou com diversas homenagens. Até chegar à Reitoria, ele foi guiado por um cortejo do Afoxé Filhos de Gandhy e um coral formado por estudantes da instituição apresentou Toda Menina Baiana, uma de suas mais famosas composições.
Emocionada, Luzia Mota, reitora do Ifba, não escondeu a felicidade por Gil ter sido o primeiro escolhido para receber o título da instituição.
“A cerimônia de entrega do título de Doutor Honoris Causa a este baiano aplaudido e reverenciado mundialmente estará inscrita como um capítulo especial na história da nossa instituição, da educação e da cultura da Bahia e do Brasil”, afirmou a reitora.
Com seu jeito sublime, que o faz parecer mais entidade do que ser humano, Gil agradeceu a honraria poeticamente, como lhe é de costume: “Ao filho da terra, que saiu por aí a semear a arte da canção, a esse filho chamam aqui hoje para prestar-lhe uma homenagem. Aqui reproduzimos o hábito da crença na civilidade. Aqui é o tempo e o além do tempo. Obrigado, obrigado e infinitamente obrigado”.
Entre aqueles que defendem que toda homenagem a Gilberto Gil ainda é pouco se comparada às contribuições para a sociedade, está o secretário de Cultura e Turismo de Salvador (Secult), Pedro Tourinho:
“Todo o reconhecimento para Gil é um reconhecimento para nossa cultura e é pouco diante de sua obra e importância para nossas vidas”.
Também presente no evento, Bruno Monteiro, titular da pasta estadual da Cultura, caracterizou Gil como um patrimônio cultural nacional:
“É uma homenagem muito relevante que fortalece a nossa cultura e também a caminhada de um homem que sempre se dedicou às melhores causas”.
O espaço onde hoje está localizado o Ifba não foi palco apenas de alegrias para a infância de Gilberto Gil. Em novembro de 2021, o cantor publicou um relato nas redes sociais em que revelou o racismo sofrido no Marista. Segundo ele, foi no ambiente religioso a primeira vez que se deu conta de que era vítima de preconceito racial. Apesar do disfarce, Gil relembra que chegou a ser chamado de “negro boçal” por um professor, quando apenas pediu uma explicação.
“Só fui sentir o racismo quando comecei a ir ao Colégio Marista, de pequenos burgueses, na maioria brancos. Era uma discriminação disfarçada, atenuada durante todo o tempo, mas com algumas manifestações agudas”, contou.
*Com orientação de Fernanda Varela.