Goiânia – A mesma “fila da fome” comumente ocupada por pessoas em situação de rua, na capital goiana, passou a ser compartilhada, nos últimos meses, por famílias inteiras que possuem casa ou moram de aluguel, mas que já não conseguem comprar o gás de cozinha ou a comida suficiente para todos.
As refeições entregues durante a semana por instituições de caridade, em pontos com concentração de pessoas em situação de vulnerabilidade, têm sido a solução para um público crescente, vítima da inflação do país, e que já corresponde à maioria da fila da marmita, em determinados locais.
A reportagem do Metrópoles foi às ruas da cidade na última semana e acompanhou o trabalho dos voluntários da Associação Tio Cleobaldo, que é uma das mais tradicionais de Goiânia e cujo trabalho foi iniciado no final dos anos 1970.
De janeiro a junho de 2021, foram entregues pela instituição cerca de 70 mil refeições nas ruas da capital, uma média de 11,6 mil por mês. Só em junho deste ano, em um único mês, foram mais de 30 mil “quentinhas”, um reflexo claro do aumento da demanda e da fome entre a população local.
“Esse momento é o mais difícil que já enfrentamos, até então, semelhante ao pico do período crítico da pandemia. É difícil, porque não tem emprego, e isso aumentou demais a demanda. Estamos muito preocupados”, expressa Cleobaldo Martins de Oliveira, de 78 anos, fundador da Associação.
População vulnerável A população de rua em Goiânia, conforme o último levantamento feito pela prefeitura, seria de 1,6 mil pessoas. As associações acreditam que esse número cresceu e já seriam 2 mil, pelo menos. “E temos, ainda, de 3 a 4 mil pessoas que estão recorrendo às ruas temporariamente, em busca do alimento”, completa Cleobaldo.
O grupo de voluntários da instituição criada por ele faz a entrega das refeições duas vezes por semana (quarta e domingo), em 13 rotas diferentes em Goiânia e cidades da região metropolitana.
Antes da pandemia, a associação entregava 400 refeições na quarta e 800 no domingo. Hoje não é menos do que 1,5 mil em cada um dos dias. Só nessa quarta-feira (3/8), foram mais de 2 mil.
Entre os locais considerados mais preocupantes, na cidade, estão: a Avenida Independência, no Centro, na região da Rua 44, e a Praça Joaquim Lúcio, no Setor Campinas.
“Não fosse isso, não sei como seria” Na praça, a reportagem presenciou mães com filhos de colo, em carrinhos de bebê, pais trabalhadores, mas cujo salário já não é suficiente para cobrir a alimentação do mês, e idosos, moradores de locais próximos, misturados àqueles que vivem em colchões improvisados ou dormem nos bancos do local.
A fila heterogênea, rapidamente, se formou quando a Kombi da associação chegou à praça. Mãe solo de quatro filhos, sendo um de 14 anos, outro de 8, um de 6 e a mais nova, Emilly, de apenas um mês de vida, Cirlene Pedro Nascimento, 37, era uma das que esperavam pela chegada das marmitas.
Moradora do Setor Aeroviário, ela começou a buscar as refeições na Praça Joaquim Lúcio há cerca de quatro meses. “Não fosse isso aqui, eu não sei como seria. Foi uma mão na roda, porque para mim é muito difícil. Do ano passado para cá, eu me separei, fiquei grávida, meu pai morreu… Aconteceu de tudo”, conta ela.
“O salário já não dá mais”, diz pai de duas crianças Ao lado da esposa e de um dos filhos pequenos, o vigia Guilherme Dias Silva, de 24 anos, também era um dos que estavam na fila, à espera da refeição. O salário que ele recebe no trabalho já não tem sido suficiente para arcar com todos os custos: aluguel, água, energia, gás e alimentação da família.
“Você vai ao supermercado hoje com R$ 100 e não compra nada. O salário não dá. Tenho um filho de 11 meses e outro de 7 anos. Moro em casa alugada, tenho moradia, mas falta alimento sempre. Com a ajuda desse pessoal aqui, não tem fome, graças a Deus. É uma benção o que eles fazem para a gente”, diz ele.
Nas últimas três semanas, a família de Guilherme recorreu à fila da marmita formada na Praça Joaquim Lúcio. Nesse período, segundo ele, aumentou a quantidade de pessoas necessitadas no local.
“De um tempo para cá, a fome aumentou mesmo, de verdade. Para a gente que é pai e tem família, é muito sofrido. Se não for aqui, passa precisão”, afirma o vigia.
Criança comendo capim Para quem acompanha de perto e atua na entrega das refeições, o acirramento da pobreza é nítido. A assistente social que atua há 10 anos na Associação Tio Cleobaldo, Maylla Amorim Lopes Rigonato, define o momento atual como “assustador”.
“Não são só as pessoas na rua que estão passando fome. Tem muita comunidade que a gente atende, onde cada barraco tem várias crianças, até oito crianças, e as mães, muitas vezes, estão abandonadas pelos homens. A maioria é de pessoas em vulnerabilidade alimentar”, explica.
No dia a dia, Maylla já se deparou com o caso extremo de uma criança que comia capim para se alimentar. Em outro, a mãe dava chá no lugar do leite, porque não tinha dinheiro para comprar. “Essa é a realidade que estamos enfrentando. As crianças estão desnutridas”, afirma.
Difícil de sobreviver Pessoas em situação de vulnerabilidade da cidade vizinha de Trindade (GO), por exemplo, a 18 km de Goiânia, chegam a se deslocar para a capital para buscar a refeição entregue pela associação. Os voluntários, muitas vezes, precisam fazer vaquinha para pagar o ônibus de volta, nesses casos.
“O salário não está dando. O aluguel teve aumento, a água e a energia, também. Com R$ 500 hoje, você não consegue fazer a compra do mês jamais. Como sobrevive uma pessoa que ganha salário mínimo? Como ela paga ônibus? Como que garante a higiene, compra sabonete, xampu, condicionador, papel higiênico? Não dá para ter uma vida digna. As pessoas não estão dando conta de sobreviver”, expressa Maylla Amorim.
A reportagem procurou a Prefeitura de Goiânia e buscou algum representante da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SEDHS) que pudesse falar sobre a situação, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
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