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Há um século, o que assombrava o Centro Histórico eram histórias de assombração

Largo do Pelourinho no início do Século 20 (Foto: S.M. Lopes/Acervo Biblioteca Nacional)

A violência anda comendo no Centro Histórico de Salvador, e quem anda por lá costuma descrever o cenário atual como assustador. Relatos de abordagens violentas, assaltos e até assassinatos se empilham na esteira do abandono de um dos sítios históricos mais importantes das Américas, e chamar a polícia parece tão comum como chamar um uber – com a diferença que só um deles costuma aparecer.

Mas engana-se quem acha que o medo é serventia do Pelourinho e adjacências apenas por agora. Há pouco mais de 100 anos, o local já ostentava um lado pra lá de sombrio, embora a origem do medo tivesse como fontes coisas que talvez não existissem. Quem faz esse relato é o intelectual, escritor, jornalista, abolicionista, político frustrado, artista desiludido e grande historiador baiano Manuel Raimundo Querino, que virou camiseta de saudade eterna há exatamente um século.

Alguns anos antes do adeus, em 1916, o estudioso de nossas histórias e costumes lançou ‘A Bahia de Outrora – Vultos e Fatos Populares’, livro reeditado por ele mesmo em 1922 no qual descreve diversas tradições já em desuso naquele período, mas que nos ajudam até hoje a entender nossa formação. Num dos capítulos mais interessantes, intitulado ‘Superstição’, Querino revela aspectos curiosos de uma sociedade de base majoritariamente católica, orientada por crendices populares de tempos imemoriais.

“A Bahia de outras eras, que tanto primava nos diversos ramos do saber, acolheu em alta escala a superstição, talvez com a fusão de diferentes tipos que entraram na formação da nossa raça; resultando daí as diversas crenças populares, ainda muito em voga”, comenta o autor, lembrando de contos criados para amedrontar crianças, como a mula sem cabeça, a cabra cabriola, a caipora, o tatu gambeta e o lobisomem.

Foto: Reprodução

“Nas ruas, avultavam as casas mal assombradas, com prejuízo dos proprietários, pois ninguém queria habitá-las. Diziam que as almas vinham à noite, cada uma exercendo a função que tinha em vida. Ouviam-se batidos de sola por sapateiros, lavadeiras esfregando roupa, quitandeiras mercando”, lista Querino, que morava no Centro Histórico (quando nem histórico chamavam), sendo a propósito um dos fundadores do Liceu de Artes e Ofícios, no Pelourinho.

Ele destacava que eram fartos os relatos de aparições fantasmagóricas por ali. “As beatas perdiam-se das horas de ouvir a missa, e então encontravam sempre com visagens, entre as quais os fantasmas, que eram os indivíduos vestidos de branco, que aumentavam de tamanho, e por isso denominados: ‘cresce e míngua’”. Não raro, as moças de família usavam esses relatos sobrenaturais para despistar a família, após encontros amorosos proibidos. 

Oratórios concorridos
Querino destaca que a crueldade da vida real, naquele tempo, auxiliava no reforço às diversas modalidades supersticiosas, e cita exemplos práticos ou bastante comentados, como os traficantes de carne humana. Se estes existiam mesmo, ele não sabia dizer. Assim como não dava conta da origem da chamada “encomendação das almas”, prática religiosa na qual as pessoas iam às ruas rezar pelas almas de entes falecidos ou de mortos que julgavam ainda necessitar de orações. 

“A encomendação das almas era uma detestável prática, saturada de ideias absurdas, embora sustentada com ingenuidade ou boa intenção. Nas sextas-feiras de cada semana, rezava-se o ofício da Paixão; aos sábados, o ofício de Nossa Senhora, nos oratórios particulares e públicos, e em diversas igrejas”, menciona o autor, que foi um dos intelectuais negros mais importantes do final do século 19 e início do 20.

De acordo com Querino, os oratórios mais concorridos durante essas peregrinações, que incluíam cânticos lamentosos e desafinados, ficavam no atual Centro Histórico. Um deles era o da Cruz do Pascoal, no Santo Antônio, que está lá até hoje, seguido de um que ficava na Ladeira do Carmo; tinha outro no Maciel de Baixo, no Pelourinho; mais um ali do lado, na Baixa dos Sapateiros, e finalmente, lá em cima, o de Santo Antônio da Velha Bárbara, de junto da Igreja da Misericórdia.

O oratório da Cruz do Pascoal, no Santo Antônio Além do Carmo (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)

Sassaraneco
Um dos causos de assombração mais disseminados na Velha São Salvador, e que hoje nem o Google tem ciência (tô registrando agora), foi a aparição de um pobre diabo chamado Sassaraneco, convocado a tocar para o povo durante uma festa religiosa e popular.

“Os mais antigos contam a lenda de que, em certa ocasião, num festejo de Nossa Senhora da Conceição, divertiam-se muitas pessoas, faltando, porém, um tocador de viola, para animar. Alguns dos interessados saíram à busca do que precisavam todos. Por acaso, encontraram, numa esquina, um rapaz tocando admiravelmente”, relata Querino sobre a lenda urbana.

Enquanto o misterioso homem da viola botava o povo pra quebrar, volta e meia a multidão bradava: “Viva o senhor Sassaraneco!”, que respondia: “Bravos as mulatas!” Mas quando a turma dizia: “Viva Nossa Senhora da Conceição!”, o homem respondia, em voz baixa: “Com esta senhora não quero graça”.

“Até que afinal alguém prestou atenção e calou-se. De súbito, grita um menino: ‘Olhem, o senhor Sassaraneco tem o pé redondo!’ O homem deu um grande estouro e desapareceu, produzindo enorme fumarada, tresandando a enxofre”, complementa Querino, que supõe ter servido essa fábula para o reforço da crendice, na época, de que ao ouvir uma viola, altas horas da madruga, era provável que fosse o capiroto dedilhando.

Querinão da massa
O historiador e professor Jaime Nascimento, um dos pesquisadores mais dedicados à obra de Manuel Querino, destaca que esse tipo de registro da vida cotidiana e da cultura popular, numa época em que a historiografia ainda engatinhava, é da maior importância para entender a Salvador da virada dos séculos 19 e 20.

O professor Jaime Nascimento ao lado de retrato de Manuel Querino feito por Hyppolito João Almeida, em 1933, para o IGHB (Foto: Nara Gentil/Arquivo CORREIO)

“No que toca a historiografia, a crônica da vida cotidiana só veio a ter papel de destaque na segunda metade do século 20, o que significa dizer que também nessa área Manuel Querino foi um pioneiro, da mesma maneira que no registro da Culinária Baiana, dos Homens Pretos na História, dos Artistas Baianos, das Artes na Bahia, do Colono Preto como Fator da Civilização Nacional”, lista o professor Jaime.

Ainda de acordo com o especialista, isso caracteriza Querino “como um pensador de amplo espectro e, sobretudo, um outsider no pensamento da época, enfrentando não os fantasmas e supertições que habilmente descreveu, registrou, mas sobretudo o Racismo Estrutural que dominava a nascente República Pós Abolição”. Um legado realmente assustador, afinal, Querinão era malassombrado!

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