Se você é uma mãe que trabalha fora de casa, talvez se identifique com isso: uma rotina diária que inclui as horas do seu trabalho formal, o período de atividades domésticas como cuidar das crianças ou fazer o jantar, e mais um terceiro momento, depois de tudo isso, quando dá conta de alguma pendência para o dia seguinte.
Esse é o chamado ‘terceiro turno’ das mães que trabalham, como explica a ativista Desiree Coleman-Fry, vice-presidente de Diversidade, Igualdade e Inclusão do Federal Reserve Bank em Saint Louis. “Isso não se sustenta. Não existem horas suficientes no dia”, diz ela, que veio a Salvador este mês, a convite do Consulado Geral dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, e participou do Scream Festival.
Em parceria com o LinkedIn, Desiree criou uma comunidade de apoio a mães trabalhadoras que já alcançou mais de mil mulheres em 30 diferentes países.
“Decidi criar um espaço para mulheres e mães que trabalham poderem reconhecer os desafios de crescer na carreira e querer ser uma mãe maravilhosa para os seus filhos”, explica.
Em entrevista ao CORREIO, ela falou sobre os desafios das mulheres no mercado de trabalho, a importância da diversidade nas empresas e promoção da saúde mental.
Você criou uma comunidade para ajudar mães. De onde veio a inspiração e como funciona essa iniciativa?
Eu era recém-casada, estava casada havia um ano. Temos uma ‘blended family’ (quando a família tem filhos do casal, mas também de uniões anteriores dos parceiros), então são quatro crianças, o que é muita coisa. Eu sempre fui uma pessoa muito focada em crescer na minha carreira e continuar explorando meus interesses. Ao mesmo tempo, sempre fui uma pessoa que quer oferecer o melhor para meus filhos e reconheço que parecia que essas duas coisas estavam em conflito às vezes.
Quando você observa quem está provendo a maior parte do cuidado com as crianças, com a casa, são as mulheres que têm muitas tarefas relacionadas à casa e às crianças. Então, eu estava lendo um artigo que falava sobre o ‘terceiro turno’. Mulheres vão ao trabalho, comparecem, fazem tudo muito bem, fazem magicamente, completam todos os afazeres.
Depois, elas saem, vão para casa, tomam conta das crianças. Acabei descobrindo que, entre mulheres que estão em um estágio mais avançado na carreira, ainda havia alguma demanda que elas não tinham feito no horário de trabalho. Então, à noite, talvez elas estejam checando os e-mails ou trabalhando em um projeto para ficar pronto para o dia seguinte. Ou seja, você tem o primeiro turno, que é quando elas vão ao trabalho; o segundo turno que é colocar as crianças na cama, ajudar no dever de casa; e o terceiro turno, que é preparar mais alguma coisa para o trabalho no dia seguinte. Isso simplesmente não se sustenta. Não existem horas suficientes no dia.
Então eu decidi criar um espaço para mulheres e mães que trabalham poderem reconhecer os desafios de crescer na carreira e querer ser uma mãe maravilhosa para os seus filhos.
Como começou?
O LinkedIn tem um programa de aceleração para criadores em que eles escolhem 100 pessoas ao redor dos Estados Unidos para desenvolver essas conversas. Eu fui uma dessas pessoas. Então, eu foco em conversas relacionadas a mães trabalhadoras, a mulheres no mercado de trabalho e ao impacto econômico nas mulheres. Existem pesquisas nos Estados Unidos que sugerem que existe uma lacuna quanto às promoções, ou seja, que quando as mulheres perdem sua primeira promoção, o impacto dura a vida toda.
Se você contabilizar o total de tarefas com as crianças e com a casa que as mulheres fazem, a conclusão é que nós precisamos de um aumento. Existem tantas formas diferentes de mulheres contribuírem com o cuidado doméstico.
Essas coisas me fizeram pensar e, à medida que eu comecei a ter conversas, pessoas estavam dizendo: ‘eu preciso disso, eu me sinto sobrecarregada, eu sinto como se tivesse todas as expectativas sobre a minha vida’. Eu só queria criar uma comunidade para mulheres compartilharem suas estratégias, como elas conseguem e o que elas fazem.
É online e gratuita. Eu faço entrevistas de 30 minutos para mulheres compartilharem suas histórias. O programa começou em janeiro.
Qual é o maior desafio no mercado de trabalho hoje para uma mulher que também é mãe?
São tantos, mas eu diria que são as prioridades que competem entre si. No trabalho, você tem uma lista de coisas pelas quais você é responsável e talvez o seu empregador não se importe com o fato de que você tem uma lista de prioridades em casa. Da mesma forma, seus filhos não ligam para isso (as prioridades no trabalho) quando eles precisam de alguma coisa.
Então, o que vai ter a minha atenção hoje? Alguém descreveu como um jogo com uma bola de vidro. Ela é preciosa, não pode deixar cair. Um dia, essa bola de vidro pode ser o trabalho, porque você tem uma apresentação importante. Em outro, sua bola de vidro pode ser seus filhos, porque eles têm um jogo de futebol importante. Então, (o desafio) é identificar, no dia a dia, como conseguir dar conta de todas as coisas.
Nós estamos na Bahia, um estado com uma população majoritariamente negra. Na pandemia, vimos muitas mães enfrentando dificuldades para garantir o sustento de suas famílias, mas sabemos que essa situação é ainda mais grave quando se trata de mulheres racializadas. O que pode ser feito para que essas mães sejam igualmente acolhidas pelo mercado de trabalho?
A consultoria McKinsey tem um ótimo estudo que fala sobre o impacto que a covid teve, de forma desproporcional, em comunidades de pessoas racializadas, e como foi esse impacto em mulheres racializadas que também são mães. Existem tantas questões aí.
Em primeiro lugar, para algumas pessoas, as horas de trabalho foram reduzidas ou a situação financeira mudou substancialmente. Se você está numa situação em que já existe uma disparidade de gênero ou disparidade racial, as consequências são realmente devastadoras.
Uma das coisas que eu comecei a ver nos Estados Unidos é que você pode fazer um estudo de pagamento igualitário. Olhe todas as pessoas que estão em uma função específica e veja o salário delas. Observe a diferença entre os salários delas e a variação entre eles. Se essa diferença está além das normas da indústria, então você sabe que tem uma situação de pagamento desigual.
Existem coisas que organizações podem fazer e muitas delas estão focando em subsídios para creches. Algumas até adotaram as despesas com creches. Mas se você pensa no que é necessário para que uma mulher vá trabalhar, você remove as barreiras. Se existe uma necessidade de transporte, a organização pode oferecer transporte, assim como creche. Mas a maior coisa é pagar mais às mulheres. Podemos começar por aí.
Como convencer e incentivar pequenas empresas a investir em diversidade?
Você já viu o filme Pantera Negra? Quantos recordes de bilheteria ele quebrou? E o musical Hamilton? Quantos recordes foram quebrados? O que essas duas produções revelam é que ter diferentes vozes no ambiente produz algo mágico.
A consultoria Boston Consulting Group diz que organizações que têm mais grupos de gerência com diversidade têm receitas 19% maiores devido a essa inovação. A consultoria McKinsey identificou que empresas que tinham mais diversidade étnica e cultural tiveram aumento de 33% nas suas performances. A Harvard Business Review publicou que equipes diversas podem resolver problemas maiores.
Então, é bom para o seu negócio. É bom para as pessoas na sua equipe. E é a coisa certa. Estamos em 2022. Não é só ‘legal’ fazer. As empresas estão descobrindo que não é apenas necessário, mas imperativo. Se você não está fazendo, você ficará para trás.
Desiree Coleman-Fry veio a Salvador para o Scream Festival (Foto: Ana Lúcia Albuquerque/CORREIO) |
É mesmo diferente quando temos mulheres em posições de decisão? Elas realmente conseguem apoiar mais mulheres?
Eu estava conversando com um colega que falava das experiências de trabalho dele. Ele notou que, nas equipes com maior percentual de mulheres como líderes, a cultura era um pouco diferente. Acho que existe algo (diferente). Não tenho uma pesquisa sobre isso, mas o que eu sei é que na área do capital de risco, mulheres consistentemente superam seus colegas homens, ainda que elas sejam menos financiadas. Quando você olha o nível de falhas, mulheres frequentemente superam os homens, por uma variedade de fatores.
Mulheres são inteligentes, cheias de recursos. Se alguma coisa está vindo e não tem dinheiro suficiente, você vai descobrir o que fazer. Acho que isso é algo maravilhoso sobre mulheres. A McKinsey também identificou que não apenas etnia, mas a diversidade de gênero tornava 21% mais provável de superar a média de lucros numa organização. Por isso, se você é dono de um negócio, diversificar suas equipes é bom para o negócio. Não é discutível.
Outro tema que ficou ainda mais urgente após a pandemia foi a importância da saúde mental. Como empresas e equipes podem se preparar para isso?
Humanos não são robôs. Nós temos uma gama de experiências, temos uma identidade, temos características que nos tornam o que somos. Acredito que o que a pandemia nos ensinou é que nós não produzimos ferramentas. Existe um limite de energia, um limite de resiliência, um limite de trabalho que nós temos que fazer.
As empresas têm que deixar de olhar seus funcionários como unidades de produção e olhar como uma totalidade, como uma identidade. Circunstâncias externas vão impactar no trabalho.
Recentemente, teve um tiroteio em uma escola na comunidade que faço parte, no Missouri. Naquele dia, no trabalho, eu disse a mais de uma pessoa ‘eu não posso fazer essa apresentação’. Quando um caso como George Floyd [homem americano negro morto por policias brancos em 2020] acontece, você não pode ir ao trabalho e fingir que o que acontece fora dali, longe das quatro paredes do seu escritório, não vai te afetar.
As empresas que estão entendendo isso estão focando em recursos para saúde mental. Elas estão oferecendo sessões de aconselhamento, ajudando pessoas a conseguir tratamento mental como parte de seus benefícios trabalhistas. Eles estão também garantindo que esses pacotes incluam acesso à terapia, para que os empregados tenham acesso ao que eles precisam. Empresas como a Nike oferecem uma semana de folga apenas para saúde mental. Não são férias, mas uma semana de saúde mental.
O que eu recomendaria a outras empresas é para olhar seus benefícios, olhar os recursos que estão disponíveis para os funcionários e garantir que eles estão sendo oferecidos. As pessoas estão trabalhando muito mais do que oito horas de um dia para o outro.
Acredita que esses exemplos podem ser aplicados ao Brasil?
Com certeza. No pacote de benefícios (direitos trabalhistas) é possível incluir terapia, por exemplo. À medida que as empresas estão decidindo como compensar e ao mesmo tempo apoiar os empregados, elas podem construir esse apoio à saúde mental.