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Mariene de Castro: “A Bahia enterra vivos os seus sambistas”

Mariene de Castro tinha terminado de fazer um show com o Cortejo Afro no último ensaio de verão do bloco fundado por Alberto Pitta, onde ela tocou por sete anos, quando um incômodo que já existia foi tomando seu peito. Naquele dia, a quatro da abertura do carnaval, Pitta comentara que queria contratá-la para se apresentar, mas faltava verba. Ao longo dos meses anteriores, recebia muitas mensagens com fãs perguntando o porquê de não tocar no carnaval e pedindo para que ela aceitasse fazer parte da folia baiana – pedidos que foram reforçados por fãs de vários Estados diferentes após o show com o Cortejo Afro. Naquela noite, a cantora não dormiu. Nas primeiras horas da manhã seguinte, decidiu fazer um texto respondendo à pergunta que vinha recebendo e também mandando um recado abrindo o jogo sobre o incômodo que não era recente: já tinha duas décadas e meia. O seu samba e a sua música não têm portas abertas no Carnaval e ela não tocava porque não recebeu convites.

O desabafo rapidamente viralizou nas redes sociais, ganhando proporções que a cantora não imaginava. “Não foi a primeira vez que eu me posicionei”, justifica ao falar sobre o espanto quando viu mais de 20 mil curtidas e milhares de comentários na postagem que virou manchete na Bahia e no Brasil. Nesta terça-feira (15), Mariene foi anunciada como uma das atrações do Festival da Cidade, em comemoração ao aniversário de Salvador. Ela se apresentará no palco montado no Largo da Mariquita, no Rio Vermelho, no dia 26 de março. O show terá como convidados Aloísio Menezes, Roberto Mendes e Ganhadeiras de Itapuã. Com a certeza de que aquela postagem acabou impulsionando, mas sem se deslumbrar, ela afirma que a Bahia não reconhece seus sambistas e os força a ir embora para outros pólos, como o Rio de Janeiro, para sobreviver. “A Bahia enterra vivos os seus sambistas”, desabafa em entrevista exclusiva com o CORREIO que você pode conferir nas linhas abaixo.

CORREIO: Mariene, esses últimos dois meses imagino que tenham sido exaustivo pra ti. Imaginava que seu texto iria repercutir tanto?

Mariene de Castro (M.d.C): Jamais imaginaria essa repercussão, até porque já me posicionei outras vezes, sou uma pessoa que trata com muita transparência as coisas que acontecem comigo, a vida, meus pensamentos. Durante a pandemia, comecei a me expor e falar mais de mim. Essa aproximação da internet me trouxe essa abertura para escrever e expor meus escritos. Muita coisa eu escrevia e não postava. Nesse dia, fui cantar no Cortejo Afro, no pelourinho. Foi uma segunda-feira, eu e o Cortejo fazendo 25 anos, eu vendo a luta de Alberto Pitta trazendo aqueles meninos de Pirajá durante 25 anos, sem patrocínio. Ele já tinha o desejo de me chamar de volta para o ortejo, onde toquei por 7 anos. Aquilo tudo mexeu demais comigo, veio um filme na cabeça, me vi 25 anos depois, no Pelourinho, cantando no lugar que cantei pela primeira vez quando a carreira começou, meu convite para turnê na França, onde foi super reconhecida, a imprensa falando super bem de meu trabalho com repertório de compositores baianos. Veio um misto de lembranças. 

Fiquei hospedada em frente À Igreja de São Francisco e lembrei de cantar ali na gravidez de João Francisco, meu primeiro filho, que ganhou esse segundo nome por conta desse dia. Eu fiquei muito emocionada, mexida. Veio tudo isso, sabe? Quando terminei o ensaio do Cortejo, tinha fã de tudo quanto era lugar do Brasil, eu recebi essas pessoas, muitas não via há muitos anos por conta de todo o período da pandemia, as pessoas me perguntavam o porquê de eu não cantar em Salvador, me pedindo para aceitar cantar em Salvador. Na internet, vinha recebendo mensagens nesse teor, as pessoas questionando o porquê de eu não cantar. Tudo isso me fez sentar para escrever, explicar para as pessoas, inicialmente, que eu não iria cantar no Carnaval de Salvador por uma falta de convite e só isso. Aí vieram outros sentimentos, de uma artista com 25 anos de carreira com esse tratamento em sua terra. Todo o mundo sabe, vê, entende. 

CORREIO: Você acha que se não fosse aquele texto, teria o diálogo e espaço que veio agora com apresentação no Festival da Cidade?

M.d.C: Fiquei impressionada com a repercussão. Postei, desci para tomar café e quando voltei tinha 20 mil curtidas, 5 mil comentários. Eu nunca li tanta coisa linda na minha vida de pessoas, sentimentos, pessoas escrevendo várias linhas falando do que achavam de mim e não vi um comentário negativo nessa postagem. As pessoas falando que não entendiam porque meu trabalho não tinha espaço em Salvador. E não falo só de 2023, entende? Não estou falando de gestão A ou B. Falo de uma história de 25. Pare para olhar: você me viu tocando em camarote tal, fazendo participação não-remunerada, com artista tal por amizade. Não eram shows que eu era contratada para cantar. 

Fora o Cortejo Afro, que ao longo de 7 anos passei com as televisões desligadas, desfilando de madrugada, com Alberto Pitta fazendo o bloco na luta, na raça, sem patrocínio, num trio que era espremido no fundo e na frente. O Cortejo sempre com carro pequeno por não ter dinheiro para um trio grande. Tudo isso me trouxe o sentimento para escrever. Foi meu coração puro. 
Passei aquela noite sem dormir porque o sino da igreja tocava. Escrevi com o dia nascendo. Umas 9h da manhã, postei. Eu não imaginava a repercussão, o silêncio de 10 dias para alguém poder se manifestar ou falar alguma coisa porque acho que isso também fala muito. Foram matérias na Rolling Stone, Folha de S. Paulo, todos os jornais de Salvador, um número gigante de artistas que falaram, outro número gigante que não se posicionou, talvez para não se comprometer – que entendo, também. Falei da dor de muitos, não só da minha, o que é muito importante.

CORREIO: Após o convite para tocar no Festival, as reclamações ainda seguem? O samba e a música de terreiro têm espaço nas curadorias do circuito oficial de Salvador?

M.d.C.: O texto foi importante porque acho que o ritmo que canto deveria ser reverenciado e tocado no Carnaval de Salvador. Eu sou uma pessoa que tem relação com o carnaval. Não sei se dizer se [o samba] tem espaço porque falar pelos outros é difícil. Mas eu não tive espaço ao longo de 25 anos. Não é simplesmente chegar o carnaval e fazer um trio no carnaval em qualquer horário, sem visibilidade, sem um trio bacana. Acho que precisa de uma reparação, dar espaço com igualdade para com a música da Bahia em si. Não só com alguns segmentos, sendo pontual. Se não, você segrega. E a música é para somar, unir, fazer um papel que é a minha missão.

Eu poderia ter escolhido outras coisas, mas minha alma pede para eu cantar isso. Quando comecei a carreira, as pessoas diziam que eu precisava sair da Bahia, de Salvador porque as pessoas não consomem isso. E aí lancei O Santo De Casa para dizer que é importante estar aqui, construir minha história aqui e ver a história de outros sambistas como Riachão, Batatinha, Claudete Macêdo, que morreu recentemente sem reconhecimento algum. Em breve vira nome de circuito, mas a gente precisa parar de fazer homenagens póstumas e só lembrar das pessoas como um tributo. E Roque Ferreira? E Roberto Mendes? E Nelson Rufino? E tanta gente jovem que está começando e precisa de uma estrutura?

CORREIO: Ninguém no mundo se faz sozinho, artistas muito menos. Que outros nomes que fazem uma música como a sua poderiam ser mais visibilizaria ou pelo menos que indicação de artistas, da velha guarda à juventude, você tem a trazer para nossos leitores?

M.d.C.: Quais artistas, sambistas baianos, que tiveram notoriedade no cenário nacional? Fora os compositores baianos, que ofertaram para os sambistas do Rio de Janeiro com seus maiores sucessos? Alcione com Ilha de Maré; Nelson Rufino e Roque Ferreira para Zeca Pagodinho; Beth Carvalho, que fez o ‘Beth Carvalho canta o Samba da Bahia’. 

É impressionante o quanto esses sambistas são abraçados pelo samba do Rio de Janeiro, que nasce na Bahia em Santo Amaro da Purificação, com Tia Ciata. A Bahia enterra seus sambistas vivos quando nega espaços e maneiras do sambista se sustentar na própria terra. Eu passei 15 anos com um projeto que se autossustentava, mas sei o desafio que é isso, sem patrocínio. Quando eu fui morar no Rio de Janeiro, minha carreira tomou uma proporção significativa, fui entender que o Brasil me conhecia e eu não fazia ideia. Não tinha internet dizendo onde a gente toca, onde a gente chega. Descobri que tinha fã-clube no Rio de Janeiro, em São Paulo, tudo com um trabalho árduo feito aqui na Bahia, fruto de muito esforço. Eu sou muito agradecida ao povo da Bahia, que enche teatros, que acompanha, que canta o meu repertório e o de tantos outros nomes que não tiveram o reconhecimento que deveriam em sua terra.
 

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