A oralidade é elemento fundamental das religiões de matriz africana. Num contexto de escravidão, para passar seus costumes e criar suas próprias narrativas, a voz, o canto, o grito ou mesmo o cochicho de canto de ouvido foram as ferramentas para existir e garantir continuidade. O novo show de Mariene de Castro , Povo de Santo, é uma celebração a tudo isso.
A filha de santo lá do Terreiro do Gantois volta a tocar presencialmente em Salvador após os dois anos em que se manteve reclusa, cuidando de si, de seus filhos e de seu entorno. O espetáculo acontece sábado, às 20h, no Teatro Castro Alves.
O nome do show, conta, foi inspirado pelas apresentações virtuais. “Era uma virada do ano, já vinha fazendo algumas lives, alguns shows de casa e em meio a isso eu chamava as pessoas para cantar comigo. Numa segunda cantava para Exu, outra para Ogum, rezava Ave Maria sempre às 18h”, lembra Mariene. Em setembro, dedicou um mês inteiro a Cosme e Damião. “Isso me fazia bem, sabia que aquilo era um afago para a alma de várias pessoas e isso me deixou bem comprometida”, diz.
Quando Mariene fala que fez isolamento, é bem ao pé da letra mesmo. Não teve fugidinha ou saidinhas até que os quatro filhos tomassem a segunda dose da vacina contra a covid. Dona de casa assídua, como ela mesma se define, aproveitou para ficar bem próxima das crianças, procurando atividades e conteúdos para todos, enquanto se preparava para voltar.
“Eu sou do candomblé e tenho na minha missão mesmo o falar, o cantar, o nosso direito de ser livre e fazer nossas escolhas sem gerar guerra. As grandes guerras são geradas por intolerância e desrespeito à escolha do outro. Chamei gente de vários segmentos religiosos. Inicialmente cantava só de palma e voz, os meninos têm um atabaque e João falou ‘mãe posso tocar’, depois Bento começou a fazer”, contou.
Assim, criou ou revisitou espetáculos e álbuns durante os últimos dois anos. No começo, recorda, era difícil se arrumar toda para cantar de frente para o celular. Mas foi resistindo, para dar exemplo e levar alento a quem podia.
“Isso movimentou a alma da gente. Perdi a conta da quantidade de shows que criei nessa pandemia. Os Olhos de Oxum, Marinheiro de Água Doce, fiz os discos Colheita e Abre Caminho, fiz o show Ser de Luz umas quatro vezes. Eu fiquei em casa, mas tive um movimento muito grande de criação, de produção. Rafael, meu marido, fazia o cenário. Os meninos tocavam. Era um circo mambembe. A família com todo mundo fazendo e participando”, enumera.
Dois dos filhos de Mariene estreiam no palco em novo show (Foto: Edson Machado) |
No novo show, Mariene traz ritmos de quatros nações do candomblé: Kétu, Angola, Jeje e Efon, mais conhecida como Ijexá. O projeto fala da ancestralidade afro-indígena, dos pontos de caboclo, dos cânticos sagrados e das músicas lançadas durante o período de isolamento, gravadas dentro da sua casa.
Durante as 1h30 de apresentação, ela será acompanhada por Fábio Cunha, Iuri Passos, Marcos Bezerra, Dudu Reis, Lucas Andrade , Nino Bezerra, além da estreia oficial de Bento Miguel e João Francisco, seus filhos.
A ideia de Mariene era retomar as apresentações em Salvador. Recusou propostas que classifica como irrecusáveis, por acreditar que se manter em casa era o correto. Até que, após as crianças estarem vacinadas, veio o convite de tocar em São Paulo, na Casa Natura Musical, na semana passada. Lá, apresentou Povo de Santo e voltou a ter contato com o público. Agora, é a vez de sua casa.
“Em Povo de Santo, a gente chega para dizer que Exu não é o diabo. Chega pra dizer não à intolerância religiosa. E tudo isso em Salvador. Tocar em Salvador é diferente, é minha casa, é mais gostoso. Fazer esse show, que é um ato antirracista, de amor e fé nessa casa tão especial para minha carreira como o TCA é algo que me deixa ansiosa e feliz”, disse. Os ingressos para o show variam de R$ 64 a R$ 188 e estão à vendida na plataforma Sympla e na bilheteria do TCA.