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Moradores de cidade baiana são explorados em vinícolas do Sul há mais de uma década

Chegada a maioridade, um morador pobre e desempregado de São Domingos, no Nordeste baiano, vê dois caminhos: permanecer, empregado no comércio, prefeitura e roçado, ou ir embora. Quando a segunda opção é a escolhida, o nome de um conterrâneo surge – Pedro Augusto de Oliveira Santana.

Durante pelo menos 12 anos, Pedro Augusto levou gente de São Domingos para trabalhar em latifúndios no Mato Grosso e também avícolas e vinícolas no Rio Grande do Sul. O empresário é acusado de submeter mais de 200 trabalhadores a condições análogas à escravidão.

Na terra natal de Pedro, conhecido por “filho de Dona Abelita”, a notícia das infrações trabalhistas cometidas pela empresa dele não chegou a surpreender – eram conhecidas. Quem não viveu trama parecida, conhece quem sim.

“Muitas pessoas sabem como é, mas as pessoas aqui, muita gente não tem renda, e vão. Fizeram como eu”, conta uma das vítimas.

A rede de atuação do empresário envolveu, em mais de uma década, intermediários que recrutavam, nos interiores e em Salvador, profissionais interessados em trabalhos temporários no oeste e sul do país. O esquema de prestação de serviços terceirizados beneficiou diretamente, neste início de ano, três grandes vinícolas brasileiras: Salton, Aurora e Garibaldi. 

O ciclo do que seriam três meses bem-sucedidos rompeu no dia 22 de fevereiro – ao longo da última semana, novas denúncias surgiram. 

De um alojamento na gaúcha Bento Gonçalves, fugiram três trabalhadores para denunciar em um posto da Polícia Rodoviária Federal como eram tratados na lida na colheita de uva. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) caracterizou a condição dos 207 homens encontrados depois da denúncia como “análogas à escravidão”, quando a pessoa é exposta a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, condições degradantes e tem a locomoção restringida. 
 
Desde janeiro, trabalhadores foram agredidos por supervisores (inclusive com choques elétricos), trabalharam sob chuva ou sem descanso, comeram comida estragada, viveram, enfim, o horror do que é chamado escravidão moderna. O que acontecia a 3 mil km era, em São Domingos, uma ferida compartilhada.
 
A cidade 
Até 1982, São Domingos não era uma cidade. Por isso, Pedro foi registrado em Valente, município ao qual o então distrito pertencia. A mudança de status não significa prosperidade.
 
Em São Domingos, onde vivem 9 mil pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “vai para Feira [de Santana], para longe ou se obriga a trabalhar no campo”, perfila um jovem que, sondado para ir a Bento Gonçalves, preferiu não ir.

Vista aérea de São Domingos (Foto: Divulgação/Prefeitura de São Domingos)

O rendimento mensal médio das famílias locais é de R$ 1,5 mil e a proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 8% em 2020.
 
A dinâmica social do município é a de um interior de pequeno porte, onde famílias se reconhecem por gerações e os exemplos de nativos que alcançam o sucesso são conhecidos. Era o caso de Pedro. 
 
Não é o empresário quem fazia a recruta dos trabalhos. Esse papel é exercido por diferentes pessoas anualmente: elas sondam, por meio de chamados direto ou aplicativos de mensagens, quem são as pessoas sem emprego formal e potencialmente disponíveis a migrar por um trabalho temporário. No caso da colheita da uva, esse trabalho acontece entre janeiro e março.  

Os próprios trabalhadores, ao retornarem para São Domingos, falavam com amigos desempregados quanto à possibilidade de emprego no sul do Brasil. “Para quem está acostumado ao sofrimento, acha que é vantagem”, acredita um nativo, amigo de oito ex-funcionários de Pedro. 
 
Aos 15 anos, Nuno (nome fictício) ouviu pela primeira vez sobre as viagens a trabalho organizadas pela companhia de Pedro, chamada, na época, Oliveira e Santana. Depois da maioridade, ele pediu a uma recrutadora para trabalhar na próxima temporada de uva. 

Atendido o pedido, embarcou em um ônibus que cortou o Brasil por três dias. Partiu porque precisava do dinheiro, R$ 4 mil por 60 dias, para bancar um tratamento de saúde. O número de viagens dele será ocultado para evitar a identificação dele.

“Um colega meu bem mais velho já tinha me contado como era o sistema. Já rolava esse negócio de bater, agressão. Mesmo sabendo disso, eu tive que sair para conseguir o primeiro emprego. Uns 15 amigos meus já foram”, lembra Nuno.

As condições de trabalho eram piores para quem trabalhava diretamente na colheita, relataram vítimas. A empresa administrada por Pedro, a Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão, ainda prestava serviços para 23 produtores rurais cujos nomes ainda não foram divulgados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). 

As vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi adotaram posicionamentos semelhantes: disseram-se surpresas diante das condições de trabalho dos prestadores de serviço que atuavam para encher as garrafas de suco e vinho vendidos por elas.
 
O sonho da ‘vida melhor’
Dos 207 trabalhadores resgatados pela PRF, 194 retornaram à Bahia (rumo a pelo menos nove cidades), mas quatro baianos quiseram continuar no Rio Grande do Sul. Em mais de uma década, houve pessoas de São Domingos que partiram, mas permaneceram por lá. A expectativa era uma nova oportunidade de trabalho.  

Vítimas de todo o estado chegam à Bahia (Foto: Fernando Vivas/Governo da Bahia)

A quantidade de resgatados de Bento Gonçalves acompanha uma escalada da escravidão moderna, no Brasil, impulsionada pela flexibilização das leis trabalhistas, o fenômeno da terceirização do trabalho e a falta de profissionais o suficiente para atuar na fiscalização. 

“Hoje, há um déficit de pessoal grande, principalmente da auditoria fiscal do trabalho, que fiscaliza as condições de trabalho. Cerca de 50% das vagas de trabalho estão desocupadas. São necessários mais concursos públicos”, estima Carolina Ribeiro, promotora do MPT na Bahia. 

No ano passado, 2.575 pessoas foram encontradas em situação análoga à de escravo. Foi o maior número desde 2013, afirma o MTE. Na Bahia, foram 82 resgatados. Mais de 80% dos resgatados no Brasil eram negros.

A figura do aliciador está sempre presente na narrativa da escravidão moderna. Quem recruta pode ser punido, assim como as empresas beneficiadas pelos serviços prestados. Acima do aliciador, estaria o “gato”, gíria que se refere àqueles que intermedeiam a relação trabalhista entre o real empregador (normalmente, grandes empresas) e o trabalhador submetido à exploração. A pena prevista para o crime pode ser de cinco a dez anos de reclusão.

“A primeira questão do fenômeno é: ele, o baiano, não é o protagonista, é o peão, digamos assim. Os protagonistas são as empresas que mais ganham. Ele é o malandro ali no meio, na medida que aparecer na mídia, vai perder espaço, mas outro vai aparecer e assim sucessivamente”, explica Vitor Filgueiras, professor de Economia da Universidade Federal da Bahia. 

Em áreas subdesenvolvidas economicamente, como algumas zonas rurais que dependem de bons ciclos de colheita, há um campo fértil para o aliciamento de pessoas. “O capitalismo por definição já coloca as pessoas em vulnerabilidade. Elas precisam vender sua força de trabalho e quanto menos opções têm, mais vulneráveis são. Só políticas perenes, como o Bolsa Família, e uma melhora da situação econômica, poderiam ajudar”, pontua Filgueiras.

Tão grave é o contexto socioeconômico que muitos trabalhadores sabem a exploração a que podem ser submetidos em determinadas vagas. Uma vítima de trabalho análogo ao de escravo não precisa ter sido enganada para ser vítima.  

“O que torna uma pessoa vítima não é ela saber ou não o que vai encontrar, mas a necessidade. A maldade está em utilizar essa vulnerabilidade. Talvez seja até pior se obrigar a uma situação que você sabe como será”, contextualiza Filgueiras, também coordenador do projeto Vida Pós-resgate que, em parceria com o MPT, trabalha para reinserir no campo vítimas de situação análoga à escravidão.

Em comunicado à imprensa, a Fênix Serviços informou que “os fatos flagrados em Bento Gonçalves seriam esclarecidos em tempo oportuno”. Já ao MPT do Rio Grande do Sul, a empresa ofereceu, em tentativa de acordo, R$ 600 mil para danos morais das vítimas e R$ 1 milhão em verbas rescisórias. 

De morador de zona rural a “gato” 
Quando chegavam ao destino, os trabalhadores contratados pela Fênix participavam de um evento antes de começarem a jornada de dois meses. Uma reunião, marcada por Pedro, acontecia no dia seguinte à instalação dos homens.

Nela, o empresário contava como saiu de São Domingos até chegar a Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. O estado é o destino de milhares de trabalhadores que atuam por temporada nas colheitas da uva e maçã. Ano passado, 156 pessoas foram resgatadas em condições de escravidão moderna em terras gaúchas.

Instalação de homens no alojamento da Fênix (Foto: Divulgação/PRE)

Antes de fixar residência por lá, Pedro viveu em Goiás, onde encontrou moradia na casa de primas. “Ele conta que ficava na casa das primas, de favor. Depois que foi para o Rio Grande do Sul”. Dois irmãos de Pedro o acompanharam e, hoje, trabalham para a Fênix.    

A Fênix substituiu, em 2019, a antiga empresa de Pedro: Oliveira e Santana, criada em 2012 e  autuada 10 vezes por irregularidades trabalhistas. A suspeita do MPT é de que ele tenha fechado a companhia e aberto uma nova para escapar das acusações. 
 
Um ex-trabalhador da Fênix minimizou as ações da empresa do conterrâneo: “Pedro é um cara até bom, no trabalho ele pode exagerar um pouco, mas de conversar é tranquilo. Nem é querendo defender”. Mas acrescenta: “Se fizesse algum trabalho errado, ia ter punição”. 

Depois do resgate dos 207 trabalhadores em Bento Gonçalves, Pedro Augusto foi preso. O encarceramento do empresário, no dia 23 de fevereiro, é o único elemento de fato novo para moradores de São Domingos. “Aqui, o povo falou por ele ter sido preso, porque sabia como acontecia”, compartilhou um deles. 

A novidade durou dez horas: tempo o suficiente para o acusado pagar a fiança de R$ 39 mil e sair pela porta da frente da Penitenciária de Bento Gonçalves.

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