A cidade é tragada por uma ofegante epidemia que se chama Carnaval. E eu, ouvindo um jazz na varanda, agradeço aos deuses epicuristas o fato de morar a uma distância segura dessa hecatombe de alegria fugaz. Por aqui passam apenas carros esparsos e ônibus vazios. Relembro sem nostalgia os carnavais da minha juventude e os que cobri por obrigação profissional. As paqueras eventuais, a embriaguez permanente, a dificuldade de me relacionar com multidões e uma enorme indiferença diante de todo aquele caos.
Estrelas já surgiram na noite da Bahia preta e eu não canto calado aquele frevo axé, embora de vez em quando cantarole outras canções de Caetano, o homem velho que me serve de farol. Aproveito os breves dias de ócio apreciando livros e filmes. Estou nas páginas finais da biografia de Nilda Spencer, A Dama e o Tempo, escrita pelo amigo Marcos Uzel. Através dela, faço pequenas viagens a uma Salvador que não conheci, provinciana e conservadora, mas também embrião de vanguardas estéticas e comportamentais.
Recém-adquirido como um presente de aniversário para mim mesmo, o livro Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo Tio, da alemã Herta Müller, espera a sua vez na mesinha de cabeceira. Nela também repousa o onipresente volume de poesias de Borges. Poesias que são meu desafogo, meu assombro, meu nascedouro de pequenas epifanias noturnas antes de me lançar nos braços de Morfeu. Engrandecem o sono, enriquecem os sonhos.
Na noite de ontem, recebi uma visita do meu pai. Eu habitava aquele território fugidio da insônia, com sua vigília inconstante, repleta de ligeiros mergulhos na inconsciência. Então, em dado momento, imergi fundo e fui parar no banheiro do antigo village de veraneio da minha família. Fechei a porta para trocar de roupa e logo em seguida meu pai bateu. Abri a porta e ele entrou com uma garrafa de vinho tinto na mão. Perguntei: “É o Rhône ou o pinot?”. Ele respondeu: “O pinot”. Eu disse: “Acho que vou te acompanhar numa taça. Já está resfriado?”, ao que ele respondeu: “Sim, eu só gosto de beber pinot bem resfriado”.
Em seguida, conversamos sobre algum assunto sem importância e logo fui puxado de volta à superfície. Abri os olhos no escuro e sorri em silêncio, feliz com a visita curta, mas intensa, do meu velho pai, morto há quase 20 anos. Tanto eu quanto ele éramos bem mais novos no sonho. Acho que não chegamos a beber juntos um pinot noir, embora tenhamos compartilhado muitas garrafas.
Não deixo de me assombrar com esses estoques aparentemente inesgotáveis de contos, novelas e romances aleatórios que nos tomam de assalto a cada noite. Personagens reais ou imaginários, cenários esquecidos ou inexistentes, mortos que ressuscitam, vivos que morrem. Épocas que se encadeiam e se deslocam, como num romance de Juan Rulfo. Somos arrebatados pelo delírio, a tal ponto que duvidamos se o que vivemos no dia a dia não é sonho e o que sonhamos, a realidade de um universo paralelo.
Às vezes, me pergunto se não há milhares de nós – iguais em quase tudo – habitando diferentes bolhas de um multiverso. Os sonhos seriam um portal no qual essas vidas se intercomunicam brevemente. O encontro com meu pai na noite de ontem nada mais seria, então, do que um rasgo entre as bolhas, uma fissura através da qual é possível vislumbrar nossas outras existências, tão distintas e ao mesmo tempo tão semelhantes às nossas. Seria uma maneira de não estarmos tão aprisionados a nossa existência tão breve.
Mas como imaginar algo ainda maior e mais intangível do que o nosso único universo? Como pensar em bolhas gigantescas convivendo em espaços-tempos estanques desde sempre, sem começo, meio ou fim, com todos nós vivendo inúmeras existências dentro deles? Como encontrar respostas para esses questionamentos que nos levam à mais completa ignorância do que somos? Enfim, buscamos uma lógica, algo a que possamos nos agarrar como uma boia nesse mar de incompreensão.
Diante de tantas indagações, talvez tivesse sido melhor eu ter me embrenhado na insanidade eufórica da folia, enchido a cara com cerveja ruim e tomado uns sopapos na pipoca de algum bloco. Ao menos não ficaria aqui, madrugada adentro, matutando desvarios sobre essas coisas que não levam a lugar nenhum. E, pior, arrastando o leitor desavisado para esta barca furada.