InícioEditorialNem generalista, nem profissionalizante: onde fica o professor no novo Ensino Médio?

Nem generalista, nem profissionalizante: onde fica o professor no novo Ensino Médio?

Ilustração: Quintino Andrade/CORREIO

“No momento estou lecionando a eletiva Tira o Pé do Chão, ministrada apenas para a turma do 3° ano do ensino médio em uma escola da rede pública. A proposta está na compreensão do exercício físico como fenômeno promotor de saúde e qualidade de vida”. É assim que o professor de educação física Cláudio Nascimento define uma das inúmeras novas disciplinas criadas com o Novo Ensino Médio, que começou a valer este ano.

“Precisei pesquisar muito sobre envelhecimento e hipertrofia muscular. Aprofundar fundamento de conhecimentos sobre nutrição e rendimento esportivo, além dos benefícios do exercício físico para a saúde mental, os hormônios da felicidade, sua função cognitiva, redução do stress, depressão, prevenção ao TDAH”, complementa o educador, que leciona na rede pública e particular.

Com multiplicidade de novos componentes curriculares, Cláudio confessa que o nome da disciplina causou um certo estranhamento tanto entre os alunos como professores: “Após o entendimento do conteúdo e apresentação da didática, o interesse tem aumentado. O novo modelo dificultou a maneira de aplicação em sala de aula, onde temos que mudar toda estratégia para prender a atenção dos alunos”.

Nenhum ensino médio é mais igual em lugar nenhum do país. Na verdade, nem mesmo a grade curricular de uma escola localizada bem ali na esquina da outra. Com a reforma, só uma parcela das aulas é semelhante a todos os alunos, direcionada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A outra parte da formação básica permite que os alunos escolham um itinerário formativo com total autonomia da escola na sua oferta. Os itinerários contemplam as áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e o ensino técnico, porém, não é toda instituição de ensino que vai oferecer todos esses caminhos ao estudante. 

Professores que conversaram com a reportagem relataram o surgimento de outras  eletivas como Leitura e Escrita de Mundo, Saberes e Sabores, Ciência com a Palavra, Quintal Vivo, Cultura Popular e Patrimônio Cultural Corporal, Meio Ambiente, Energia e Sociedade, Os Números e suas Relações, Projeto de Vida, Ciências em Cena, Matemática para além dos Números.

Entre os impactos diante da reforma, os educadores enfrentam redução de carga horária de matérias generalistas, ou seja, menos aula de Língua Portuguesa, Matemática, História, Física, Biologia, Geografia. E falta material didático específico para muitas das novas disciplinas eletivas, laboratórios e estrutura.  Para o doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Fernando Cássio, o trabalho dos professores mais que dobrou.

“De três disciplinas agora, você tem 50. São os mesmos professores, não mudaram as condições de trabalho, a estrutura da carreira, formação e salário. Nada contra fazer horta, ter uma formação profissionalizante, mas essas coisas precisam fazer sentido. Tem que estar ali a mais, um ganho além da aula de Física. Quantas horas de física foram perdidas nas escolas particulares? Nenhuma”, opina.

Outro ponto crítico está no aumento do fosso de desigualdade entre a educação ofertada na rede pública e privada, como argumenta ainda Cássio.  “Na prática, a reforma reduz o ensino médio dos estudantes mais pobres a uma base medíocre de Português e Matemática, o que vai aumentar barreiras de acesso ao ensino superior. Mais um efeito colateral é o risco de desmontar o sistema unificado de seleção nas universidades, construído a duras penas. Na hora que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) mudar para atender ao novo currículo, teremos instituições que vão começar a recriar os vestibulares próprios”.

Desafios
Professor de Física há 15 anos, Thalisson Andrade ensina em 20 turmas.  No ano passado, na escola particular em que trabalha, lecionou a eletiva Investigação Forense. Hoje, na escola pública, dá aulas de Estações do Saber e, na privada, ensina a disciplina Aprofundamento em Física para o Novo Enem.

“Se determinada disciplina tiver pouca ou nenhuma adesão, o professor, que é aulista, corre o risco de ficar sem carga horária para lecionar. Para além desse aprendizado, tivemos que criar novos materiais, planejamentos e, em alguns casos, sair totalmente da área de formação”, conta.

A reforma foi aprovada ainda no governo do ex-presidente Michel Temer com a proposta de ser implementado gradualmente até 2024.  A Lei nº 13.415/2017 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e estabeleceu mudanças na estrutura e organização curricular do Ensino Médio. Em 2022, as transformações começaram pela 1ª série. Em 2023 contemplaria a 1ª e 2ª séries e, no ano seguinte, concluiria o ciclo de todos os anos. A lei só estabelece como obrigatória os componentes de Língua Portuguesa, Matemática e Língua Inglesa. Todos os outros são incluídos a critério dos sistemas de educação.

Iago Gomes dá aulas em oito turmas do ensino médio em Feira de Santana e mais três turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) na rede pública. Graduado em Letras e mestrando em Educação pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), entre as disciplinas que ministra, além de História e Biologia, Iago ensina as eletivas Protagonismo Estudantil e Racismo na Escola, A Arte de Morar e Meu Eu Escritor.

“É uma imposição de matrizes curriculares sem diálogo. A ausência de estruturas físicas adequadas à execução dos itinerários é grande dificuldade. Não vejo outra saída a não ser a revogação. É preciso ouvir estudantes, professores e pesquisadores sérios e que estão realmente preocupados em defender a educação”, diz. 

Professor em uma escola da rede pública no subúrbio de Salvador, Newton Júnior ensina Matemática há 23 anos. Porém, assim como Iago, teve que pegar itinerários de disciplinas completamente diferentes de sua formação. Este ano, Newton vai lecionar apenas duas horas semanais de Matemática e as eletivas de Cidade em Movimento e Direitos Humanos.  “São itinerários ofertados de maneira precária, sem infraestrutura, o aumento considerável do número de componentes curriculares. Tudo isso só acentua  a fragmentação e desregulamentação da profissão”. 

Já Vinicius Oliveira é professor de História na rede privada e particular. Com oito turmas, ele assumiu a eletiva de Direitos Humanos e Cidadania. “História, passou de três horas por semana para apenas uma. Procuro simplificar as exposições e criar pontos de contato com as novas disciplinas e assim tentar compensar a redução. A fragilidade da reforma é a fragilidade da educação brasileira”.

Contexto
Procurado pela reportagem, o Ministério da Educação (MEC) disse que “a posição que tem defendido é pela retomada do diálogo democrático sobre o sentido do ensino médio, suas distorções e boas práticas, de modo a apoiar as redes de ensino”. O ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou que um grupo de trabalho será montado para reunir todos os setores educacionais interessados em discutir o modelo.

Na última quinta-feira, dia 9, a pasta publicou uma portaria para abrir uma consulta pública visando avaliar o Novo Ensino Médio. Também durante a semana, em reunião com o presidente Lula, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) pediu a revogação da reforma. “Por isso, existe uma corrente nacional contra essa reforma que de inovadora não tem nada”, opina o coordenador geral do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia (APLB), Rui Oliveira.

O coordenador geral do Sindicato dos Professores do Estado da Bahia (Sinpro), Allysson Mustafa, concorda com a revogação: “Os professores vivem um misto de angústia e frustração, despreparados para lidar com grande parte das propostas, porque não foram formados para este modelo. Há um desestímulo, que já havia crescido com a pandemia e suas exigências”.

Aqui na Bahia, segundo dados da Secretaria de Educação, cerca de 20 mil professores estão em atuação no ensino médio na rede estadual de ensino. Em 2018, 534 Unidades Escolares Estaduais (UEE) aderiram ao Programa Pró-BNCC na condição de escolas-piloto, para a adaptação ao Novo Ensino Médio. Em 2022, as demais unidades passaram a fazer parte do Programa Itinerários Formativos, instituído pela portaria federal 733/2021. 

Nas escolas particulares, apesar de não precisar números,  o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado da Bahia (Sinepe) afirmou, no último levantamento feito pela entidade, que a maioria das escolas implantou o novo ensino médio de alguma forma, nas turmas de 1ª e 2ª séries. “Tudo ainda está sendo feito de forma adaptada, já que não há uma total clareza de como será o Enem de 2024. Muitas escolas adotaram eletivas voltadas para tecnologia e empreendedorismo. A escolha varia muito conforme o perfil da instituição, seus estudantes e profissionais disponíveis”, comenta o diretor do Sinepe, Wilson Abdon.

Do outro lado do debate, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) defende o novo modelo. Em carta aberta, a entidade, que tem uma reunião com MEC prevista para o dia 16 de março, argumentou que “não é sensato pensar em descartar todo esse esforço técnico e financeiro despendido pelas redes estaduais ao longo dos últimos anos. Para o Consed, aprimoramentos e ajustes podem e devem ser discutidos. No entanto, a revogação não é o caminho”.

Pontos de vista
A professora de História Rejane Pereira não assumiu nenhuma eletiva, mas perdeu metade da carga horária. “Sou professora há 13 anos. Os desafios, na verdade, são também estruturais. Os professores estão atentos, buscando um trabalho coletivo e reflexivo que ultrapassa os muros da unidade escolar”.

No caso da professora de Língua Portuguesa Maíse Balbino, ela ficou sem nenhuma disciplina da sua licenciatura nas nove turmas que ensina na rede estadual e particular. “No momento só ensino itinerários. Vejo os colegas na luta para conseguir administrar a demanda das eletivas, que, geralmente, possuem carga horária pequena, fato que compromete a quantidade de turma dos professores, já que é preciso pegar várias turmas em várias séries para completar as horas”.

Consultor educacional e professor de Filosofia e Projeto de Vida, Saulo Dourado dá aulas em 25 turmas. Ele reconhece as críticas e problemas do modelo, mas enxerga o surgimento de novos componentes como uma oportunidade para que o educador possa fazer diferente. “Se existe essa autonomia, que o professor se aproveite dela para criar. Por exemplo, eu posso em um colégio estadual criar uma eletiva? Pode. Que a gente escolha as possibilidades mais críticas e criativas para habitar nas lacunas desse modelo”.

Caminhos
Esvaziamento do currículo, novos componentes dos itinerários formativos que não suprem as lacunas. Diversidade de desenhos curriculares e distorções geradas entre o que é ensinado em cada escola. Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e professora da rede estadual de ensino, Catarina Cerqueira ressalta que a reforma permite que pessoas não licenciadas ministrem aulas, o que a médio e longo prazo vai acarretar uma desvalorização mais acentuada da carreira docente. “Os efeitos disso para as licenciaturas é muito perigoso, pois torna os currículos muito mais enxutos e de pouca densidade para a formação específica”, pontua.

Efeito que atinge diretamente a formação do senso crítico dos estudantes, acrescenta Catarina: “Não há como remediar uma reforma que terá um grande impacto nas gerações. Quando existe um modelo que condiciona o jovem a escolher apenas um itinerário – que na realidade tem a oferta definida pelas secretarias de educação – você priva o estudante do conhecimento socialmente construído pela humanidade”.

Qual a saída? Para a professora de História na rede particular e doutora em Educação pela Universidade Estadual da Bahia (Uneb) Heloisa Helena Tourinho, mais que uma reforma é preciso a valorização do trabalho docente. “Melhores salários, formação, adequação das salas de aula e das escolas. É preciso investimento nisso para que os estudantes possam ter de fato uma educação formativa”.

Heloisa insiste que cada escola está fazendo o que bem entende. “As mudanças curriculares são bem-vindas quando elas se apropriam da realidade que ocorre na educação, o que não é o caso do Novo Ensino Médio. O que acontece com o novo ensino médio é a fragmentação do conteúdo, a fragmentação da área e o esvaziamento do que seriam as ciências humanas. Efetivamente isso representa um retrocesso”, completa.

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