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Nem sempre foi assim: o que mudou no trajeto do cortejo nesses 200 anos?

Rua dos Perdões, no bairro do Santo Antônio Além do Carmo. É ali no meio do circuito por onde passa o Cortejo do 2 de Julho que fica a casa onde a família da professora Juliane Neves mora há 40 anos. Ver da janela a passagem do Caboclo e da Cabocla tem um sentido não só cívico mais muito especial para Juliane: “Gosto mais do 2 de julho do que do meu aniversário. É um dia de tradição, alegria e história. Cresci ouvindo sobre as lutas até a independência. A gente arruma a casa, enfeita tudo e leva três dias fazendo a maniçoba para receber nossos amigos e familiares”. Aquela casa comprada em 1983 por uma devota de Santo Antônio que fez até reza para encontrar um lugar próximo à igreja do santo, viu e ainda vê muita gente passar por ali. “A passagem da Cabocla é de arrepiar. As fanfarras são lindas demais. Nesse tempo que moro aqui, vi muitas mudanças. Não passam mais animais, já teve também um ano com minitrio, que não vi mais. As charangas diminuíram. E em ano eleitoral é sempre diferente, a concentração de gente é maior”, ressalta. E ver tudo isso desfilando bem ali de camarote rendeu ainda a fama de “casa da maniçoba”, como afirma Juliane. “Minha mãe, Dona Nicinha, sempre gostou da alegria da festa. Esse vai e vem de pessoas que passam pela minha casa por conta do cortejo fez com que ela e minha irmã Josiane decidissem fazer a maniçoba, uma receita que minha avó tinha o maior ciúme e fez prometer que só fizesse depois que ela morresse. A maniçoba se tornou tradição”. Que o sol nasceu a 2 de julho e brilhou mais que o primeiro, muita gente já sabe. Saiu da Lapinha, Barbalho, Centro Histórico. Passou pela Avenida Sete de Setembro até chegar ao Campo Grande. Trouxe junto o Carro do Caboclo e da Cabocla, as fanfarras, os batalhões patrióticos e estandartes. Inspirou as fachadas decoradas nas cores das bandeiras do Brasil e do estado da Bahia. Agora dá para entender porque a professora Juliane nem imagina hoje que um dia, a porta da sua casa não fez parte desse caminho. Dá para acreditar que nem sempre o cortejo foi assim? Para começo de história, o Terreiro de Jesus, no Pelourinho, era considerado o centro da cidade. Foi dali que saiu o primeiro desfile de 2 de julho em Salvador até a Casa da Moeda, esquina da Rua da Misericórdia com a Praça Municipal, onde estava montado um palanque com retrato de Dom Pedro I. Formato totalmente diferente do que se vê atualmente, como destaca o jornalista, pesquisador e escritor, Nelson Cadena. “Foi tudo muito no estilo salva de tiros, desfile militar e honras ao imperador. O roteiro dos primeiros desfiles não tinha nenhuma referência ao que se implementou décadas depois e que incluiu a Lapinha. O povo não participou a não ser como espectador, entoando o ‘Viva o 2 de julho’”. É o Carro do Caboclo que chega e começa a mudar muita coisa. O povo se incorpora no desfile, a partir de 1828 quando ele sai pela primeira vez, ainda que os elementos formais prevalecessem na festa. A figura não tinha sido exatamente um herói de guerra, mas sim, uma referência ao povo mestiço anônimo que lutou pela independência. Cadena retoma mais um fato interessante: “Anos depois o Carro da Cabocla passou a fazer parte do desfile, uma imposição dos portugueses, na intenção de eliminar o caboclo que consideravam uma provocação. Queriam substituir o caboclo por uma índia representando Catharina Paraguassu. O povo não aceitou e ficou com os dois símbolos”. A participação se fortalece quando o desfile passa incorporar roteiro que teria sido percorrido pelo Exército Pacificador e que incluía a Lapinha, Santo Antônio, Soledade e se torna de fato popular com a criação dos batalhões patrióticos formados por civis. “Os pioneiros foram da imprensa, dos jornais O Bahiano e O Brasileiro. Teve batalhões patrióticos dos acadêmicos, caixeiros, artistas navais, artesãos, artistas nacionais, chapeleiros, comerciantes, saveiristas, veteranos da Independência, Liga Operária. No desfile do 2 de julho, os batalhões patrióticos se organizavam a partir de entidades com alguma representação social”. Se a participação popular vai saindo da posição de expectadora da festa e conquistando espaço dentro do desfile cívico, a expansão urbana também é mais um fator que muda o curso da história e o trajeto do cortejo, como complementa o professor e historiador, Jaime Nascimento. E olha o Caboclo aqui de novo e provocando a “invenção” de um novo lugar de memória: “Como o Caboclo e a Cabocla ficavam expostos no Terreiro de Jesus e depois eram guardados num barracão que tinha perto da igreja do Rosário, se resolveu que deveria ter um monumento público para as pessoas verem o Caboclo durante o ano inteiro. Já existia o chafariz em frente ao Quartel, no Largo dos Aflitos, mas a urbanização da cidade pedia uma estátua maior e condizente com a importância do 2 de julho”. Urbanizaram a área e instalaram a estátua no Campo Grande, o que acabou aumentando o trajeto do cortejo que agora terminava aos pés do Caboclo. O ano era 1895. “O cortejo muda muito em função das transformações urbanas e por essa necessidade de ter uma simbologia, um marco mais adequado a importância da data. Por isso se construiu o monumento que transformou na Praça do Campo Grande nesse espaço de comemoração”, ressalta Nascimento. Só 20 anos depois, a Avenida Sete passa a fazer parte do trajeto após ter sido inaugurada, aproximando mais o cortejo do que a gente vê hoje. “A participação popular mudou em alguma medida por conta das transformações da sociedade. Essas conquistas foram crescendo ano a ano ampliando o percurso e a presença dos grupos que fizeram o 2 de Julho”, complementa. Mesmo após 200 anos, o trajeto do cortejo tem muita história para contar. Inclusive, coisas que pouca gente sabe. O professor, pesquisador e escritor, com mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Daniel Rebouças destaca que uma novidade que a documentação tem mostrado é de que o primeiro símbolo que representou o povo já era a Cabocla e não o Caboclo. “Essa é uma das grandes novidades da pesquisa do Hendrik Kraay, professor da Universidade de Toronto e especialista no 2 de Julho. O símbolo indígena do desfile foi uma ‘cabocla’, ou seja, uma representação feminina em posição agressiva. Isso desconfirma a versão mais disseminada que o primeiro símbolo foi um índio ferindo a serpente, numa alusão a Portugal. Vale lembrar que a América era simbolicamente representada desde o século XVII por uma indígena, o que deve ter influenciado o movimento na Bahia”, argumenta. Ainda sobre os símbolos, além da figura do Caboclo e da Cabocla, Rebouças pontua quem não podem faltar no cortejo a representação dos heróis de rua. “Lá no início, D. Pedro I, Labatut, João das Botas eram os mais populares, enquanto personagens como Maria Quitéria e Joana Angélica conseguiram se manter, embora com pequenas diferenças de ênfase. Joana Angélica, por exemplo, já foi mais exaltada por seu lado católico. Atualmente é representação de bravura. Vimos emergir figuras como Maria Felipa”. Para o pesquisador, o maior legado do desfile está justamente na apropriação constante de quase todo tipo de manifestação, seja política, religiosa, de gênero e sexualidade. “O 2 de Julho é o nosso exemplo mais poderoso da força que um processo histórico de luta pode ter na formação de um estado, de um povo. É uma festa cívica única no país, porque mistura muitos elementos, entre eles, o elevadíssimo nível de participação civil em uma festa tipicamente cívica”, completa. E se alguém te disser que tentaram ofuscar a presença do Caboclo e a Cabocla do Cortejo com outro símbolo popular? Pois é. No centenário do 2 de Julho, a participação inédita – e, porque não dizer, ilustre – da imagem do Senhor do Bonfim nas comemorações em 1923 deu o que falar. A imagem saiu da Colina em romaria marítima e foi deixada na Igreja da Vitória, retornando após uma missa campal e procissão até a Cidade Baixa. O fato, no entanto, nunca mais se repetiu. E nem mesmo nesse bicentenário a imagem do Senhor do Bonfim deve sair no cortejo novamente, segundo a confirmação do atual pároco da Basílica do Senhor do Bonfim, padre Edson de Menezes. “Cem anos depois, nesse dia de comemoração resolveram levar a imagem no cortejo, a fim de agradecer a ajuda que o Cristo deu para que os baianos vencessem, ainda que o Senhor do Bonfim tenha sido trazido por um português, o capitão Teodozio de Farias”, explica o professor e historiador, Jaime Nascimento. Não é mera coincidência, inclusive, que a Independência esteja nos versos no Hino ao Senhor do Bonfim. Ali, os baianos reconheciam que houve a intervenção do Senhor do Bonfim na liberdade alcançada, como acrescenta Nascimento. É nessa época também que se resolve fazer um concurso para colocar letra no hino, que antes não tinha letra, era só orquestral. “A participação da imagem do Senhor do Bonfim foi um fato histórico dentro de outro que já era o desfile de 100 anos da Independência. E aí é que o hino é todo trabalhado na perspectiva do episódio histórico do 2 de julho, por isso é que ele se inicia dizendo ‘glória a ti, nesse dia de glória, glória a ti redentor que há 100 anos, nossos pais conduziste a vitória pelos mares e campos baianos’”. 2 de julho de 1824 – Logo um ano depois da Independência, se inicia a tradição de fazer o cortejo em Salvador. O primeiro desfile de em Salvador saiu do Terreiro de Jesus até a Casa da Moeda. 1828 – O povo se incorpora no desfile, a partir de 1828 quando sai pela primeira vez o carro do Caboclo, em representação a participação popular na conquista da independência. Depois de 1829 – Foi só no final dessa primeira década, que criaram um dos rituais mais conhecidos: a simulação da entrada do exército pela Lapinha. 1836 – Os cucumbis – negros fantasiados de índios – passam a participar dos desfiles, fortalecendo a presença popular, mesmo que ainda sem autonomia. A criação dos batalhões patrióticos formados por civis também reforçam essa participação.  1846 – O Carro da Cabocla é incorporado ao desfile, numa tentativa de substituir o caboclo por uma índia representando Catharina Paraguassu. Só que o cortejo acabou ficando com os dois símbolos. 1895 –  É criado o monumento no Campo Grande, ampliando o trajeto do cortejo que antes ia só até o Pelourinho. 1914 e 1915 – Os caboclos deixam de sair no desfile oficial. Saíram em outro dia, no bairro de Santo Antônio. Porém, milhares de pessoas acompanharam os caboclos, o que desestimulou as autoridades da intenção de eliminar os carros da festa. 1915 –   Quando a Avenida Sete de Setembro é inaugurada, o lugar passa a receber o cortejo na ida e na volta. 1918 – O Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) passa a ser o principal organizador do cortejo, com a construção do Pavilhão da Lapinha onde ficam guardados os carros emblemáticos e as esculturas do caboclo e da cabocla. Antes, o cortejo era responsabilidade Sociedade Patriótica Dois de Julho. 1923 – No centenário da Independência da Bahia, o Senhor do Bonfim foi incorporado aos festejos do 2 de Julho. Essa foi a única participação no cortejo até hoje. De 1959 em diante – Os órgãos estatais passam a assumir a organização da festa. Mudaram também alguns heróis de rua: inicialmente, D. Pedro I, Labatut, João das Botas eram os mais populares. Personagens como Maria Quitéria e Joana Angélica, permaneceram. Figuras mais novas, entre elas, Maria Felipa, ganharam destaque. 1970 – Foi só na década de 70 que o hino ao 2 de Julho se popularizou, ainda que tivesse sido criado em 1926 pelo militar baiano Ladislau dos Santos Titara com música de José dos Santos Barreto. Entretanto, o hino só foi declarado oficial em 20 de abril de 2010, por meio da lei estadual nº 11.901, sancionada pelo governador Jaques Wagner. 2006 – O Cortejo 2 de Julho é tombado como Patrimônio Cultural da Bahia pelo IPAC e inscrito no Livro do Registro Especial de Eventos e Celebrações Estado.

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