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Os imortais do interior da Bahia que lutam para manter as letras vivas

“Gil fundiu a cuca de vocês”, vociferava Caetano Veloso num inflamado e famoso discurso em que rompia com os jurados de festivais da canção, formato que ele mesmo e o amigo Gilberto Gil ajudaram a tornar gigantes, mas não eternos. Morreram os festivais, mas o fundidor de cucas foi imortalizado, primeiro pela música (que lhe fez um navegador), e mais recentemente ao atracar na Academia Brasileira de Letras (ABL), graça alcançada por muitos outros baianos ao longo de 125 anos desde a inauguração da academia literária nacional.

Mas você sabia que também há imortais, de âmbito regional, na Bahia? Atualmente, o estado possui 30 academias de letras com caráter municipal em atividade, embora muitas estejam moribundas, quase sempre mantidas por contribuições dos próprios membros, sem apoio do poder público para disseminar suas produções – e essa história institucional vem de longe, já que uma das mais antigas confrarias nasceu em Ilhéus, no sul do estado, em 1959.

Curiosamente, as entidades não estão sob o guarda-chuva da centenária Academia de Letras da Bahia (ALB), pois atuam de forma independente. 

O mapeamento dos clubinhos literários foi feito recentemente pela Rede de Integração Cooperativa das Academias de Letras da Bahia (Rica), criada em 2020 com o objetivo de integrar e promover a difusão cultural, literária e artística das academias citadinas. O contato entre os membros dos grupos é feito por meio de outros grupos, neste caso do WhatsApp. 

A Rica é coordenada pelo escritor Aleilton Fonseca, professor e membro da ALB que há tempos já identificava a dificuldade em manter esses espaços de integração e, recentemente, resolveu criar um. “Há alguns anos eu já circulo nas outras academias, presto atenção na existência delas, e a gente vem pensando em aproximar mais essas academias para trocar experiências, fazer visitas, eventos juntos. A vida das academias é sempre muito difícil, no entanto, elas são muito importantes em cada município”, pontua.

A entidade utiliza como ferramenta básica de aproximação entre os acadêmicos e as diferentes iniciativas as ferramentas digitais. Além dos grupos de zap, há um espaço dedicado ao compartilhamento de publicações, porém ainda em fase inicial. No final de 2021, para marcar a celebração de um ano da iniciativa, um grande sarau online fora realizado.

“A importância fundamental de uma academia no município é reunir os escritores e intelectuais de diversas áreas que têm interesse em leitura para promover atividades institucionais, literárias, culturais e, com isso, aproximar o público, sobretudo os jovens das manifestações culturais, da literatura, dos escritores locais. Fomentar a cultura e a literatura na formação. Há uma aproximação com as escolas, com as universidades”, destaca Aleilton.

Origens
Na França de 1629, nove personalidades decidiram se juntar uma vez por semana para debater ideias e os conhecimentos da época. Cinco anos depois, uma dessas reuniões foi objeto de um relatório. Nascia a Académie Française. A inspiração se espalhou pelo mundo, transformando-se em espaço solene, com a missão base de preservação da língua. Em maio de 2022, a semente do século XVII deu mais um fruto, desta vez em Cruz das Almas, no Recôncavo baiano.  

Posse da Academia Cruzalmense de Letras. No centro Manoelito Roque de Sá. Da esquerda para a direita: Edsandro Barbosa, Laurenice Barbosa, Luciano Fraga, Reinadi Sampaio, Graça Sena, Luis Carlos Mendes, Mário Araújo, Sarah Carneiro, Hermes Peixoto, Lita Passos, Wesley Correia e Luiz Francisco (Foto: Luciano Fogaça)

Mas esta não foi a primeira vez que a inspiração intelectual francesa chegou às mentes da região. Um dos que experimentou o ideal foi Arlindo Fragoso, baiano de Santo Amaro da Purificação, idealizador e organizador da ALB. Intelectual e político, ele elencou os 40 membros fundadores com o que havia, à época, de mais representativo nas letras e na política baiana, criando a instituição em 7 de março de 1917. 

Você, provavelmente, jamais ouviu falar desses espaços, ainda que seja um ávido consumidor de livros e outras manifestações literárias. Uma possível explicação pode estar no fato de as academias, ao longo do tempo, ter uma baixa diversidade no padrão de produção, muito associado ao restrito meio acadêmico, além da falta de representatividade em relação aos extratos sociais. As cadeiras costumam ser ocupadas por intelectuais, homens e brancos, com poucas exceções.

Independentes
As academias municipais, no entanto, apesar de se constituírem como lugar de reconhecimento e prestígio às personalidades locais, e possibilitarem produções mais centradas nas marcas e manifestações culturais de cada cidade ou região, esbarram em muitos obstáculos. 

Na lista se inserem desde a dificuldade de manutenção das próprias instituições, sustentadas em sua maioria pelas contribuições e disponibilidades financeiras e administrativas dos próprios membros e, em raras exceções, algum apoio da prefeitura. Também há dificuldade para a inserção da produção de seus membros na própria cadeia do mercado editorial, secularmente dominado pelas grandes editoras que, por sua vez, priorizam as produções dos eixos de concentração de poder político e econômico no país – notadamente, as regiões Sul e Sudeste. 

E se não possuem relação institucional direta com a Academia de Letras da Bahia, não é com a Academia Brasileira de Letras (ABL) que isso ocorre: as entidades são mesmo uma forma independente e, de igual forma, realizam seus trabalhos e definem seus estatutos, como explica a pesquisadora Carol Dantas, que recentemente defendeu uma dissertação de mestrado sobre o mercado editorial baiano.

Ela atua há mais de 10 anos como gestora da editora baiana Pinaúna, e explica que o mercado de livros trabalha de forma encadeada, logo, se algum elo demonstrar fragilidade, todo o processo fica, de certa forma, comprometido. E é este encadeamento, associado a questões históricas e à centralidade de poder econômico, que interfere fortemente nas produções regionais. 

Gargalos
Carol Dantas destaca também a falta de políticas públicas e incentivo financeiro para juntar as duas principais pontas do processo: os autores e as editoras regionais.

“As editoras são o elo central dessa cadeia. Elas tanto se articulam operacionalmente, tecnicamente para produzir o livro, como elas têm todo o know-how (saber como), na parte artística, na criação. São elas que se relacionam com os autores em uma ponta e na outra com a parte da produção, que são as gráficas, do comercial, que são as livrarias, as distribuidoras e os promotores de livro, que são os eventos literários, os bibliotecários, mediadores, influenciadores digitais”, explica.

De acordo com a pesquisadora, as editoras baianas não têm o mesmo perfil daquelas que estão no grande centro econômico. Ao longo de sua pesquisa, ela identificou 21 editoras privadas no estado. “Aquelas editoras do Sul e Sudeste, além de terem um porte econômico diferenciado, são tradicionais, vêm daqueles grupos de família da área de comunicação no Brasil e estrangeiros que vieram para o Brasil para poder empreender nessa área. Em São Paulo, por exemplo, desde aquela época do café, das escolas públicas surgindo”, ilustra.

Ainda de acordo com Carol, o próprio mercado do livro didático começou a fomentar esse empreendimento na região, o que explica o fortalecimento das editoras ali por gerações. Dentre os gargalos para a produção local, Dantas acrescenta a inexistência de distribuidoras interessadas em levar a produção local para além dos limites regionais. “Se eles entendem que o meio comercial não vai escoar esses livros daqui porque os autores são menos conhecidos, as editoras são pequenas, logo, não tem como levar em volume e isso encarece o processo da própria distribuidora. O que tem de movimento são editoras do Sul e Sudeste escoando para o Nordeste. É um efeito em cadeia. (…) É um trabalho muito árduo das editoras locais. Um elemento histórico vai implicando no outro e deixando o cenário bem frágil”, conclui.

***

Recôncavo se destaca com seis academias
O Recôncavo é um território em que a presença das academias municipais é bastante disseminado. São seis no total, sendo cinco com autores filhos ou moradores das cidades, e uma de caráter regional: a Academia de Letras do Recôncavo (ALER), criada em 1998. As demais ficam em Cruz das Almas, Cachoeira, Castro Alves, Santo Amaro e São Francisco do Conde. 

A ALER reúne representantes de 15 municípios, alguns, inclusive, extrapolam os limites regionais, criando uma espécie de “Recôncavo particular”. A expressão é utilizada por Antônio Tibério, que assumiu a presidência da confraria em junho. “O Recôncavo é muito rico, principalmente na cultura popular. O nosso papel é zelar pela língua materna, pela nossa literatura e também funcionar como um arquivo de memória, tanto na preservação dos acervos dos próprios membros quanto dos acervos das cidades. Somos uma comunidade regional, daí o tamanho da nossa responsabilidade”, destaca. Morador de Santo Antônio de Jesus, ele tomou posse na ALER em 2014, indicação feita após o lançamento do livro ‘Nas Sílabas da Poesia’, no qual registra a cultura da região através de poesias, crônicas e cordel. 

Somadas as seis iniciativas da região, são 240 espaços reservados àqueles que, através da palavra escrita, assumem a missão de preservação da língua e memória com poesia, cordel, sonetos, romance, não-ficção, samba de roda…

Entre as autoras e autores da região que têm buscado espaço para mostrar essa cultura está a poetiza cruzalmense Lita Passos, ‘duplamente imortal’. Ocupa desde 2007 uma cadeira na ALER e, em maio, foi empossada na Academia de Letras de Cruz das Almas, junto com outras 14 personalidades da terra. 

“Venho trilhando no caminho das palavras desde sempre”, diz a escritora, que é viúva do poeta Luciano Passos, falecido em 1997. Além dele, conta que busca inspiração no convívio e experiências com um grupo de artistas de Cruz, entre eles Hermes Peixoto, Nelson Magalhães Filho, Graça Sena, Patrícia Mendes, Glaucia Guerra, Graça Sena, Luis Carlos Mendes, Hild e Nildes Sena, Ana Paula Peixoto e Cyro Mascarenhas. “Cultivavam a palavra poética e faziam a arte pulsar nas entranhas da cidade”, relembra a autora de oito livros, incluindo ‘Rosário de Lembranças’ (2011), ‘Olhos D’Água’ (2016), ‘Mulherio da Letras da Bahia’ (2018), ‘Caruru dos 7 Poetas’ (2007).

Posse de Hermes Peixoto, realizada em Crus das Almas. Da esquerda para a direita: Onésimo Gomes, Almir de Oliveira, então presidente, e o empossado (Foto: Arquivo Pessoal)

VEJA A LISTA DE CIDADES BAIANAS QUE POSSUEM ACADEMIAS DE LETRA EM ATIVIDADE 

1 – Academia de Letras e Artes de Alagoinhas – ALADA 
2 – Academia Barreirense de Letras – ABL 
3 – Academia de Letras de Bom Jesus da Lapa
4 – Academia de Letras e Artes de Brumado – ALAB 
5 – Academia de Letras de Cachoeira – ALCA 
6 – Academia Caetiteense de Letras – ACL 
7 – Academia de Letras e Artes de Canavieiras – ALAC 
8 – Academia de Letras de Candeias – ALC
9 – Academia de Letras e Artes de Candeias – ALAC
10 – Academia de Letras de Castro Alves – ALACA 
11 – Academia Cruzalmense de Letras – ACL 
12 – Academia Feirense de Letras – AFL 
13 – Academia Guanambiense de Letras – AGL 
14 – Academia de Letras de Ilhéus – ALI 
15 – Academia de Letras de Itabuna – ALITA 
16 – Academia Grapiúna de Letras – AGRAL 
17 – Academia de Letras do Vale do Itapicuru – ALVI
18 – Academia de Letras de Jequié – ALJ Jequié
19 – Academia de Letras e Artes de Lauro de Freitas- ALALF 
20 – Academia de Letras de Paulo Afonso – ALPA 
21 – Academia de Letras de Porto Seguro – ALPS 
22 – Academia de Letras e Artes de Salvador – ALAS
23 – Academia de Letras de Santo Amaro – ALSA 
24 – Academia de Letras do Recôncavo – ALER 
25 – Academia de Letras e Artes de São Francisco do Conde – ALASFCON
26 – Academia Santa-Ritense de Letras – ASL 
27 – Academia Teixeirense de Letras – ATL 
28 – Academia Valenciana de Educação, Letras e Artes – AVELA 
29 – Academia Conquistense de Letras – ACL 
30 – Academia de Letras de Xique-Xique – ALEXX.

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