O visual da tarde deste domingo nas águas do Rio Paraguaçu, no trecho entre as cidades de São Félix e Cachoeira, reproduziu o que eram os dias na região no século XIX, de acordo com historiadores. Quem chegava nas margens do rio via logo os 16 saveiros que participavam do Bordejo pelas Águas do Paraguaçu, passeio que integrou a programação do Festival dos Saveiros, primeira Festa Náutica do Vale do Paraguaçu.
As embarcações são remanescentes de uma frota que chegou a quase dois mil barcos há 200 anos, segundo moradores. Poucas mas que fizeram a alegria de baianos que saíram dos quatro cantos da Baía de Todos-os-Santos para prestigiar o desfile em alto mar do que foi, por séculos, o principal meio de transporte de cargas e de gente na região.
Luciano Ramos, 43, não é conhecido como Luciano do Saveiro em Jaguaripe, cidade onde vive, à toa. Nascido em Maragogipe, ele tem boa parte das lembranças de infância em cima da embarcação.
“Aprendi a navegar em um barco menor e, aos 12, passei para o saveiro. Conheci o barco na feira de Maragogipe, quando era menino. Olhei, gostei e já tem 30 anos que trabalho com isso”, contou.
A paixão pelo saveiro é tão grande que faz os 57 km entre Jaguaripe e São Félix parecerem um passo para Luciano: “Todos os meninos queriam andar de saveiro. Ir em Salvador na Feira de São Joaquim e também no Mercado Modelo levar banana, farinha e tudo que se produz por aqui. Carregava essas coisas e também a história da Baía de Todos-os-Santos”.
Mestre carpinteiro naval, nautimodelista e saveirista, Bira Portugal, 41, fez questão de comparecer ao evento. O Saveiro de Bira não esteve no Bordejo por questões de logística, mas só o fato de ter visto o festival foi emocionante para ele.
“Saveiro é cultura. É uma das coisas mais fundamentais na história da região e, infelizmente, está acabando. Já foram quase dois mil e agora, na região toda, só existem 22. Então, fico até emocionado com o festival, que é uma esperança de chamar a atenção para a necessidade de preservação dessa embarcação”, pontuou.
Outro fissurado pelo barco é o comerciante Jailton Pureza, 60. Tanto é que ele comprou e reformou o até então ‘acabado’ É da Vida, saveiro que era de seu avô. Comerciante da Feira de São Joaquim, ele cuida do barco justamente pela manutenção da cultura: “Lá em casa, todo alimento que entrava era por causa do saveiro. Então, ajudava meu pai, que era saveirista, a levar azeite, rapadura, farinha, porco, galinha e o que mais tivesse. Levanto essa bandeira para que o saveiro permaneça existindo. E, claro, porque queria ter um e manter a tradição da família”.
Roberto Bezerra, 68, e a arquiteta Marilia Barretto, 56, também estiveram no evento. Eles fazem parte do projeto Viva Saveiro, que existe desde 2006.
“Estamos tentando, pelo menos, preservar a história e a lembrança do Saveiro de Vela de Içar, que só existe aqui, é um patrimônio nosso. Esse barco, por 300 ou 400 anos, levou tudo que era produzido no Recôncavo para Salvador e merece continuar existindo”, disse Bezerra, sócio do saveiro Sombra da Lua.
Marília entrou para o Viva Saveiro em 2010 por conta da lembrança afetiva que tem da orla de Salvador lotada de embarcações do tipo.
“Tenho memória paisagística muito presente porque, quando a gente chegava no Mercado Modelo ou em São Joaquim ainda tinha uns saveiros. Essa memória, livros e as histórias de Jorge Amado me fizeram despertar para esse interesse”, explica ela, que é sócia do barco É da Vida.
As sociedades são algumas das iniciativas para manter vivo o barco feito com madeira, ferro e pano, que cedeu seu lugar aos caminhões quando a Bahia se encheu de estradas. O arquiteto Marcelo Bastos explica como o declínio chegou: “A partir de 1920, o desenvolvimento rodoviário começa a dar opções de trajetos. Isso aliado a outros fatores como a segunda revolução industrial, que proporcionou essa mudança de tecnologia. Os motores ocuparam o lugar das embarcações movidas pelo vento e pela maré”.
“De forma geral, os saveiros representam o principal meio de transporte na Baía de Todos-os-Santos desde a colonização. A principal atividade de Salvador, capital do Brasil por tantos anos, era o transporte de mercadorias. E quem fazia isso eram embarcações à vela semelhantes ao saveiro. As cidades do Recôncavo são feitas a partir do mar e não da terra”, conclui.
* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro