“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da mágica”
Arthur C. Clarke
“Era como uma tartaruga que mal acabasse de tirar as patas de dentro d’água”. A frase veio de repente, enquanto o avião fazia as últimas manobras no ar. Não se tratava de uma lembrança sem sentido, mas da referência ao conto “A ilha ao meio-dia”, de Julio Cortázar. Tentaria, até a aterragem, recordar o título do livro.
Naquele instante, início de uma tarde ensolarada de domingo, estava ainda à janela da aeronave, observando o mar que conduz, como uma trilha luminosa, quem chega pelo alto até as portas da velha cidade. “The long and winding road…”, cantarolava baixinho, enquanto as imagens se tornavam cada vez mais nítidas.
Há algo confuso nessa narrativa, que talvez se justifique pelos efeitos provocados pela altura. O modo como a aerodinâmica afeta os corpos no espaço. Há tantas coisas que não se sabe por completo ainda hoje. Por breve lapso, foi como se incorporássemos ilusionistas. Eu abria as minhas mãos e, entre elas, surgia um pássaro.
Você enfiava as mãos na cartola e me apresentava ao Senhor Coelho. E havia aquela intuição absurda de que, mesmo serradas ao meio, aparecíamos inteiras do outro lado. De onde saem os milagres? Mil lágrimas, como na música? O céu é dos predestinados. Mas, heterônimos rebeldes, queremos dos deuses só que não nos lembrem.
Dizem que os mágicos apostam na distração das pessoas. Dessas artes que não se aprende na escola ou nos livros. Talvez tivesse sido mais fácil se conhecêssemos algo sobre prestidigitação, levitação ou clarividência. No momento, posso prever apenas que, com alguma sorte, muito em breve, descerá o trem de pouso.
Antes, permitam-me mais uma inutilidade. Há uma pesquisadora espanhola, uma tal Martínez-Conde, que reuniu, certa vez, neurocientistas em um lugar chamado La isla del pensamento, em Pontevedra. Estudariam “la naturaleza de las ilusiones sensoriales”, algo assim. Pretendiam criar a neurociência da mágica.
Mas que rasante é esse que demos agora? Sobre isso, devo contar que, em Ribeirão, havia uns pássaros enormes que sobrevoavam nossas cabeças. Nunca havia visto um albatroz na vida. Pensei no poema de Baudelaire, que dissecamos feito selvagens nas aulas de teoria da lírica. Como eram poderosos, aqueles versos.
“El Poeta es igual a este señor del nublo/Que habita la tormenta y ríe del ballestero/Exiliado en la tierra, sufriendo el griterío/Sus alas de gigante le impiden caminar”. No aeroporto, enquanto aguardo as malas, a frase volta como se ardesse e então o título do livro vem naturalmente: Todos os fogos o fogo.