Ele ainda tem cara de menino, está prestes a completar 18 anos, porém já lida com responsabilidades de adulto. O rapaz que lava carros num bairro da periferia de Salvador abandonou a escola quando cursava a 5ª série, não se lembra ao certo quando. O sonho era jogar bola, mas o talento que, diz ele, ajuda a fazer fila em quadras, campos ou no asfalto, “onde tiver uma bolinha”, é insuficiente para lhe garantir um futuro.
Precisa trabalhar para ajudar em casa, onde todo mundo faz alguma coisa, mas ninguém tem um emprego fixo. Fora isto, ainda tem o crédito no celular, para conseguir falar com a namorada. Ele não sabe dizer o quanto recebe por mês. Cobra R$ 25 por uma lavagem padrão e nos dias bons chega a ver pequenas filas de carros no lava jato improvisado. “Eu acho que tenho muita sorte”, diz, sem tirar a cara do celular. O que ele não tem hoje é perspectiva.
“Graças a Deus, a gente nunca passou fome, agora dizer que sei o que vou comer quando sair daqui, não sei”, reconhece no meio da tarde de uma quarta-feira qualquer. A insegurança em relação a uma questão básica para a sobrevivência, a alimentação, está longe de ser algo restrito ao lavador de carros. Desde meados de 2020, o vendedor de 39 anos, que pede para não ser identificado busca um novo espaço no mercado formal.
“Já bati em todas as portas que podia, faço o que aparece”, conta. Agora começou a se aventurar numa barraquinha de lanches, de onde tenta retirar o próprio sustento e o de dois filhos, de um relacionamento anterior ao atual. O socorro, muitas vezes, acaba vindo da aposentadoria da mãe, ou da ajuda de parentes. “Eu acordo todos os dias acreditando que as coisas irão melhorar”, aposta.
Acontece que, até agora, os números relacionados à pobreza e à desigualdade não indicam sinais positivos. O Brasil não tem uma linha oficial de pobreza. Considerando o critério definido pelo Banco Mundial para países de renda média, adotado no acompanhamento das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a linha oficial de pobreza é de US$ 5,50 (R$ 29 na cotação da última sexta-feira) por dia em paridade de poder de compra. Enquadram-se na classificação de extrema pobreza as pessoas com uma renda per capita inferior a US$ 1,90 (equivalente a R$ 10).
Nos últimos dez anos, o número de baianos em situação de extrema pobreza passou de 2,2 milhões, em 2012, para 2,7 milhões no ano passado, o que representou um crescimento de quase 23%, de acordo com dados do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), com base em dados da Pnad Contínua. Houve aumento mesmo na comparação com o período anterior à pandemia, numa proporção menor, de 5%. O número de pessoas na Bahia classificadas como pobres também cresceu, passando de 5,5 milhões para 5,8 milhões, entre 2012 e 2021.
Estes números colocam o estado numa posição de destaque indesejável no ranking da desigualdade social. No caso da extrema pobreza, a Bahia aparece como a 25ª entre as 27 unidades da federação em percentual de pessoas que se enquadram nestas condições e em 22ª quando o critério é o percentual de pobres. Se forem avaliados os números absolutos, a Bahia é o estado com o maior número de pessoas pobres e extremamente pobres do país, superando estados mais populosos ou que tenham uma situação menos favorecida que a 7ª economia nacional e responsável por 4% do PIB do país, além de ser o segundo com o maior número de pobres.
O Brasil encerrou o ano de 2021 com um total de 47,3 milhões de pessoas na pobreza, o que equivale a 22,3% da população do país.
Situação piorou
Em 2015, a cabelereira Rosangela Santos, 44 anos, começou a tomar conta da cantina na paróquia Nossa Senhora da Luz e percebeu que os valores cobrados pelo café afastavam parte das pessoas, ainda que fossem comercializados a preços simbólicos. “Vi que algumas pessoas iam para a igreja só com o dinheiro do transporte”, lembra.
A partir da constatação surgiu a ideia de formar o grupo Amor de Deus, que conta inclusive com uma página no Instagram (@missaoamordeDeus). O projeto começou com a oferta de sopa e com o tempo passou a servir outros alimentos, materiais de higiene pessoal e água potável. “As pessoas foram falando das suas necessidades. Muitas precisam de água limpa porque não tem acesso. Às vezes dispensam até a comida”, conta.
Segundo Rosangela, é cada vez maior o número de pessoas que têm moradia, mas não comida em casa, ou como preparar o alimento, por falta de gás. “Na pandemia, o número de pessoas passando fome, necessidade, aumentou muito”, aponta.
Além da diversificação nas necessidades das pessoas, os novos tempos trouxeram o desafio de ampliar os dias de atuação para quem se propõe a ajudar. “Optamos por fazer a distribuição no domingo porque pediram, já que é um dia em que pouca gente faz. Maioria dos grupos vai para as ruas até sexta-feira”, conta.
“Nós temos consciência de que estamos diante de um problema muito maior que a nossa capacidade de resolver, mas nós podemos tentar amenizar a dor das pessoas”, acredita.
Ana Georgina Dias, coordenadora do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) na Bahia, explica que a concentração de riquezas é o que explica os níveis de pobreza no estado. “Se você olhar, 1% da população brasileira tem mais de 50% da riqueza, isso é um fenômeno nacional que se aprofunda muito aqui na Bahia”, destaca. Ela explica que este cenário pode ser compreendido a partir de algumas condições, como um “mercado de trabalho desestruturado”.
“Nós temos na Bahia um nível muito alto de desemprego e mesmo entre as pessoas que estão ocupadas, há um traço de informalidade que é muito grande”, diz. Ela cita dados da Pnad Contínua para mostrar que mais de 50% dos ocupados no estado são informais. “Este é um fator que reduz muito o rendimento médio aqui no estado”, explica.
“Nestas condições, mesmo se tratando de um estado rico, a 7ª economia do país, essa renda fica concentrada nas mãos de muito poucos. Mesmo no trabalho formal, o rendimento é, por vezes, menor do que se vê na média nacional”, acredita. Ela compara o cenário com o da 6ª economia nacional, Santa Catarina, que, segundo Ana Georgina tem uma diversificação econômica menor que a da Bahia, porém tem um mercado de trabalho mais pujante, com índices próximos ao do pleno emprego.
Custo de vida
O aumento do custo de vida, com a alta tanto dos alimentos, quanto de insumos de produção, como os combustíveis e energia elétrica foi um fator que ajudou a amplificar a pobreza no Brasil nos últimos tempos, avalia a coordenadora do Dieese na Bahia, Ana Georgina Dias.
“A questão do trabalho é central, várias pessoas foram jogadas na pobreza extrema, muita gente que tinha casa, tinha trabalho, mas enfrentam um cenário que é o do desemprego de longa duração”, avalia a pesquisadora. Ela explica tem muita gente que está há muito tempo procurando trabalho, em muitos casos engrossam as estatísticas de desalento – que engloba a população em idade de trabalhar que desiste de buscar uma oportunidade. “Nós temos na Bahia a maior parcela de pessoas desalentadas do país”, lembra.
Esse contexto leva a uma perda do poder de compra, quando se soma a isso uma inflação elevada, concentrada em alimentos, além de produtos e serviços vitais para a habitação, como o botijão de gás e a energia elétrica, o impacto social é devastador, diz. “Esta é uma combinação extremamente nefasta. Se observarmos bem, há um contingente que busca os programas sociais como o Auxílio Brasil, que antes não dependiam disso”, afirma. “Hoje existe uma fila gigante que de pessoas que estão cadastradas, esperando para ter acesso ao programa porque foram jogadas nesta condição”.
A Bahia encerrou 2021 com uma renda domiciliar per capita de R$ 850, o que coloca o estado na 21ª colocação nacional. Apenas o Amapá, Pernambuco, Pará, Amazonas Alagoas e o Maranhão registraram resultados piores. De acordo com o IMDS, 20,5% da renda média da população baiana é proveniente de programas sociais, 56,3% vem das remunerações pelo trabalho, enquanto 18,1% é vem de renda das aposentadorias.
Para Ana Georgina, um dos grandes desafios dos governos está em conseguir reunir e articular as políticas sociais. Um exemplo disso, aponta, está na falta de dimensionamento do público que depende dos programas sociais. “Há uma preocupação grande em aumentar o valor, e é compreensível que se pense nisto, mas talvez fosse necessário, ainda que pagando um valor um pouco menor, atender uma quantidade maior de pessoas”, pondera.
“A realidade em que nós vivemos faz com que pessoas que trabalham, muitas vezes recebem um salário mínimo, não consigam vencer o mês com a renda que têm. Não se deve olhar apenas para os que não tem renda nenhuma”, acredita. “Uma família com diversas pessoas e apenas uma trabalhando, com certeza ela estará numa condição de pobreza. Quem vive com menos de meio salário mínimo per capita está passando muita dificuldade atualmente”, avalia. Ela lembra que 62% dos trabalhadores recebem até um salário mínimo.
Ana Georgina acrescenta à análise o que considera ser uma crise estrutural. “A população negra é tradicionalmente menos privilegiada no mercado de trabalho. E isto é um traço histórico, a inserção desta população no mercado é muito complicado. A desigualdade, que é reforçada pelo racismo, é muito grande”, aponta.
A pesquisadora lembra ainda que a Bahia se caracteriza por a atividade econômica muito concentrada na Região Metropolitana de Salvador (RMS). “Nós temos alguns polos de prosperidade e muitas áreas extremamente carentes economicamente. A RMS é responsável por quase 60% do PIB do estado. Dos 417 municípios, quase 400 não têm dinâmica econômica e vivem do fundo de participação dos municípios, do que entra através da Previdência, programas de transferência e do serviço público local”, enumera. “Não tem uma fábrica, um comércio forte, atividades que sustentem a região”.
“Tem atividade em Salvador, no Oeste, no Norte, no Extremo Sul e, fora isso, um grande vazio”, aponta.
Este cenário de concentração econômica, inclusive, explica os índices de desemprego na RMS, acredita Ana Georgina. “As pessoas de outras regiões não veem perspectivas onde estão e preferem vir para a capital tentar a sorte e isso pressiona o mercado de trabalho aqui”, explica.
Para a pesquisadora, a questão da pobreza baiana não se explica apenas pelo tamanho da população. “São Paulo, por exemplo tem uma população muito maior que a nossa, o nosso problema não é populacional, é o fato de termos um mercado de trabalho desestruturado, com um desemprego muito alto e muita gente ocupada informalmente, além da subutilização da força de trabalho”, avalia. “Boa parte dos baianos tem trabalho precário, por poucas horas, e isso faz o nosso rendimento médio ser muito ruim”, explica.