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Por onde anda Liliane Mutti, a apresentadora baiana que virou cineasta lá fora

Liliane Mutti em sua versão cineasta (Foto: Divulgação)

Depois de atuar como jornalista no CORREIO e apresentadora do programa Na Carona que fez muito sucesso na TV Bahia, a jornalista Liliane Reis enveredou para o cinema e foi morar em Paris, passando a se chamar Liliane Mutti (sobrenome de sua avó materna). Na capital da França, essa baiana nascida em Nazaré das Farinhas tomou gosto pela sétima arte e não parou mais. Primeiro, fazendo curtas como o  ‘Elle’, sobre a inauguração do jardim Marielle Franco em Paris. No momento, está em cartaz ‘Miúcha, A voz da Bossa Nova’, narrando a vida e obra da cantora, irmã de Chico Buarque. E estreou recentemente ‘Salut, mes ami.e.s!’, que mostra o CIEP 449, escola franco-brasileira, pública, integral, com café da manhã, almoço, esporte, bilíngue, em Niterói.

Enquanto arrumava as malas para mais uma vez voar de Paris para o Brasil (parando primeiro no Rio de Janeiro e logo em seguida em Salvador), Liliane conversou com o Baú do Marrom. Ela contou um pouco de sua trajetória, do seu trabalho criando conteúdo para o cinema e a TV, do documentário sobre a Lavage de La Madeleine, organizada pelo santamarense Robertinho Chaves, da qual a futura ministra da Cultura, Margareth Menezes, já participou. E, como boa baiana, Liliane sente muita saudade da Bahia: “Sempre, muito, chega a doer. Eu sou baiana de Santo Amaro, de Nazaré das Farinhas, de Salvador e do Recôncavo. Quando venho, dou um abraço apertado na minha mãe e logo caio no mundo, mas a Bahia segue comigo”.

BÁU DO MARROM – Eu lhe conheci Liliane Reis, primeiro no CORREIO, depois na TV Bahia com o Na Carona e agora como Liliane Mutti, cineasta. Como foi o rito de passagem da jornalista para a cineasta?

LILIANE MUTTI – Essa pergunta mexe fundo comigo: minha origem, família, posicionamento político. Escolhi a profissão de jornalista talvez como muita gente: tinha 18 anos e precisava prestar vestibular. Sempre gostei muito de ler, de criar histórias. Sempre fui muito curiosa com as pessoas, de gostar de escutar. Era a época do Governo Collor e ele tinha acabado com a Embrafilme. Fazer cinema era algo distante para mim. Venho de origem classe-média popular, então estudar fora também não estava em questão. Queria, como muitos jovens do final da adolescência, sair de casa. Fazer jornalismo foi a maneira que encontrei de ter a minha independência. Através do jornal Correio da Bahia ganhei uma bolsa do Goethe Institut e fui para Berlim. Era para ficar 3 meses e fui ficando nove meses. A Isabela Laranjeira, que era a editora do caderno cultural Folha, me ajudou a “inventar” um “cargo” meio improvisado de correspondente internacional e fiz algumas reportagens conciliando com a viagem. Isso me permitiu experimentar possibilidades na profissão de jornalista e sou muito grata aquela equipe da redação. Assim, fui emendando um trabalho no outro. Depois, a Rede Bahia criou uma nova emissora, a TV Salvador, e precisava de programação. Com o Sergio Siqueira, criamos o Na Carona. Ele reuniu uma turma jovem, com uma atmosfera criativa borbulhante, uma espécie de MTV local. Foi um período muito fértil para a TV baiana. Tenho consciência que eu estava no lugar certo, com as pessoas certas. Mas, no fundo, queria mesmo fazer cinema, só que continuava algo distante, principalmente porque os convites que recebia era sempre para atuar e o ambiente muito masculino. Até que fui mãe. A maternidade me deu uma urgência. Olhando para aquele bebê, que pra mim simbolizava o tempo, resolvi parar de seguir o fluxo. Isso começou pelo nome, resgatei o sobrenome “Mutti”, da minha avó materna, que tinha sido apagado pelo casamento, quando só restou para ela o sobrenome paterno. Em 2016, quando estava amamentando minha filha, viajei com a Dilma (Rousseff) apresentando uma ação na qual ela respondia perguntas da população.

Liliane Reis em ação (Foto: Divulgação)

Era o Dialoga Brasil, que acontecia em espaços como teatros e foi uma experiência muito potente. Ter estado daquele lado, naquele momento histórico, com a primeira mulher presidente do Brasil, me fez entrar para uma lista de pessoas não gratas no governo do (Michel) Temer. Ali também começou o esvaziamento da Ancine (Agência Nacional de Cinema). Eu não tinha mais tempo a perder e decidi sair do Brasil ou…fui saída. Lá se vão 5 anos. Nesse período o sentimento de autoexílio sempre esteve comigo.

BM – Qual a diferença entre trabalhar num jornal impresso, depois numa emissora de TV e agora no cinema?

LM – O cinema é uma garrafa lançada ao mar, nunca sabemos quem vai pegá-la. A cineasta brasileira precisa ter um quê de masoquista. Somos um país onde as políticas públicas para o cinema sempre estiveram ameaçadas. Então, a cineasta brasileira é uma espécie de Dom Quixote. Tem muita solidão nesse ofício, mesmo sendo um trabalho tão coletivo. Porque a cineasta é aquela que vê a história, busca fazer aquela história ganhar vida e, depois, ela ser vista. E quando não temos uma indústria consolidada, acabamos estando envolvidas em muitas etapas, o que é uma entrega imensa. Às vezes sinto falta da estabilidade que o jornal impresso e a tevê me deram, mas sabemos também que as novas gerações não encontram mais o mesmo mercado. Hoje tem uma precarização em toda a cadeia e profissões. E essa exigência do empreendedorismo constante, de todos serem influencers de si mesmos, é o novo capitalismo de serviço. Nos tornamos produtos dessa nova escravidão. Não tenho respostas…mas sigo cada dia mais certa de que o cinema é o sopro que me resta para inventar novos mundos.

BM – Quantos filmes você já fez?

LM – Estou lançando o meu segundo longa. Antes fiz muitos curtas, entre eles o ‘Elle’, sobre a inauguração do jardim Marielle Franco em Paris. Esse curta foi convidado pelo Centre Simone de Beauvoir para distribui-lo e rodou muitos países. A renda foi doada para Marinete Silva, a mãe de Marielle. No próximo mês, dia 31 de janeiro, vamos exibir uma coletânea desses curtas na sede do PCF (Partido Comunista Francês), no bairro do Marais, em Paris.

BM – Qual a importância em sua carreira do filme sobre Miúcha? E por que você a escolheu?

LM – O Miúcha é, sem dúvida, o filme mais importante da minha carreira, mas, ousaria dizer, que a importância dele é mesmo para a Música Popular Brasileira. Esse filme traz uma narrativa pelo feminino capaz de colocar em xeque processos de autoria, como o disco branco de João Gilberto e o imperialismo cultural por trás do disco The Best of Two Words, feito pela Miúcha, João Gilberto e o Stan Getz. O filme é conduzido por duas vozes femininas: a maravilhosa Silvia Buarque (a atriz interpreta a Miúcha da juventude) e a própria Miúcha (na maturidade), passando a limpo sua vida e os bastidores da Bossa Nova. É um filme do tempo da delicadeza, todo costurado com aquarelas da própria Miúcha e suas palavras, através de cartas e diários. O cineasta Daniel Zarvos (meu parceiro no filme e na vida) e eu escolhemos Miúcha porque ela é a nossa bruxa querida dos Buarque de Holanda, a anti-musa rock da Bossa Nova. Tenho viajado para representar o filme em vários festivais, vejo as pessoas comovidas com o silenciamento que a personagem sofreu, mas também chocadas como no Brasil pode-se levar uma década para fazer um filme.

Miúcha, irmã de Chico Buarque e uma das musas da Bossa Nova (Foto: Divulgação)

Esse filme nadou contra várias correntes… Enfrentou uma Cinemateca sucateada, a falta de cuidado com os arquivos no Brasil, a morte de Miúcha, seis meses depois a perda de João Gilberto… Sinto muitíssimo não ter dado tempo deles terem visto o filme pronto. O João costumava ligar para perguntar do filme, ele estava muito curioso e carinhoso com o filme. Ele amou a Miúcha até o último suspiro, a gente sabe disso, foi ela quem pôs fim ao casamento deles. Mas talvez o destino não quisesse que ele assistisse ao filme… Os segredos ditos no filme, Miúcha nunca falou para João, ela sempre quis protegê-lo. E sinto também o fato do filme por enquanto estar repercutindo mais no exterior do que em casa… Bem, o importante é que o filme existe e ele fala por si. E foi muito especial tê-lo programado no Panorama Internacional de Cinema da Bahia, em uma sala de rua e nesse festival tão afetivo.

BM – Fale um pouco sobre seu novo trabalho ‘Salut, mes ami.e.s!’.

LM – Em uma das inúmeras crises que tive com a profissão de jornalista, fui fazer mestrado em educação na UFF (Universidade Federal Fluminense). Não porque quisesse dar aula, ainda não consigo me imaginar ensinando. Mas porque não sabia como faria com a educação dos meus filhos, precisava encontrar um caminho, ler, me informar. Estudei na adolescência em escola particular e vivia implorando para meus pais me matricularem na escola pública. Não suportava o apartheid racial da escola privada no Brasil e não cogitava colocar meus filhos em uma escola de “brancos”. Tão pouco achava justo com eles colocar na escola pública do governo do Bolsonaro, no qual as instituições viveram suas piores crises. Pensei em alfabetizá-los em casa, vendo filmes, ouvindo música, lendo os clássicos, dançando… Mas sou uma operária do audiovisual (trabalho sem parar para TVs escrevendo e criando séries), então o tempo simplesmente não fechava. Acabei indo para França e hoje meus filhos estudam em uma escola pública e comum, onde estão os filhos dos imigrantes e os filhos dos políticos. Nesse período, descobri o CIEP 449, um dos poucos CIEPs criados por Brizola e Darcy Ribeiro que não foram desmantelados pelos governos reacionários do Rio de Janeiro. O CIEP 449 é escola franco-brasileira, pública, integral, com café da manhã, almoço, esporte, bilíngue, em Niterói. Queria mostrar essa escola que dá certo, dizer pelos quatro cantos que é possível no Brasil. Aí, decidi fazer o que sei fazer, um filme. Estava nessa época em uma residência artística no Centre Les Récollets em Paris e o cineasta Frederick Wiseman estava lá também, a gente se cruzava nos corredores, no terraço, quando ele foi homenageado em Cannes. Comecei a revisitar a sua obra, que conhecia de quando cursei comunicação na Ufba, e encontrei High School, de 1968. Esse filme foi minha inspiração para observar o rito de passagem: e agora, o que será desses adolescentes com a conclusão do ensino médio? Essa é a pergunta do ‘Salut, mes ami.e.s!’.

BM – Apesar de morar em Paris, percebo que você mantém fortes ligações com o Brasil, em especial a Bahia, sua terra natal. Como é viver em outro país, conviver com outras culturas?

LM – Eu sou baiana de Santo Amaro, de Nazaré das Farinhas, de Salvador e do Recôncavo. Isso é muito forte e me constitui. Mas a minha raiz é elástica. Posso me jogar pelo mundo, porque acredito em um mundo sem fronteira. Acredito na invenção de raízes e que somos o que escolhemos ser. Essa pergunta me faz pensar em Costa-Gravas, cineasta grego que tem filmes emblemáticos em francês. Se eu seria capaz de dirigir um filme em francês? Já me perguntei isso e resolvi me testar. Fiz o Ta Clarice, uma ficção com três atores e um cachorro. É um média-metragem inspirado em Clarice Lispector, todo em francês. Ainda inédito porque preciso pedir a benção do filho de Clarice. E como Clarice Lispector é uma lenda para mim, confesso que ainda não venci minha insegurança. Quem sabe nessa vinda para o Brasil?

BM – Parodiando Caymmi: “Você tem saudades da Bahia”?

LM – Sempre, muito, chega a doer. Mas há dez anos, desde que trabalho com cinema, todos meus filmes foram financiados e circularam fora da Bahia, em outros estados ou países. Quando venho, dou um abraço apertado na minha mãe e logo caio no mundo, mas a Bahia segue comigo. Sou uma mulher, mãe de duas crianças, sem fundo de família e com um trabalho pouco convencional para nós mulheres. Então, só me resta fazer minhas escolhas de forma pragmática. Às vezes, penso que o mundo dos homens é pouco aberto para reinvenções para o feminino. Mulheres autônomas demais não são bem-vindas. Sempre que venho à Bahia, me perguntam pelo Na Carona. A cada vinda, explico dez, vinte vezes, que decidi sair da apresentação do programa, porque o ciclo tinha se completado, todas as cidades visitadas e estava começando a se repetir. Sou dessas, não gosto de me repetir. Mas mesmo todo esse tempo fora (12 anos de Rio e 5 de Paris), nunca deixei de sonhar em filmar na Bahia. Concordo com o Almodóvar, que quando veio à Bahia a convite do Caetano, disse que a Bahia tem a melhor luz do mundo.

A futura ministra da Cultura, Margareth Menezes, na ‘Lavage de La Madeleine’, em Paris (Foto: Fred Pontes  – Divulgação) 

BM – Mesmo com dois filmes em cartaz, você já tem novos projetos? E como anda o documentário sobre a Lavage de La Madeleine?

LM – Na sua melhor fase! Depois de cinco anos acompanhando essa que é a maior festa baiana e brasileira na Europa, finalmente adquiri os arquivos dos 20 anos da festa. Sou muito apegada a arquivos, ao cinema de manufatura. Para esse filme, como o Miúcha, tenho muitas imagens em Super 8, por exemplo. Agora, estamos tentando licenciar as músicas, o que não é nada barato, mas é fundamental, porque os autores precisam ser pagos. Estamos fazendo reuniões para buscar finalizar o filme. O protagonista é Roberto Chaves, o arlequim queer do cabaré Paradis Latin e criador dessa festa sacro-profana inspirada na Lavagem do Bonfim. Robertinho representa essa diáspora afro-baiana que levou os atabaques do Candomblé para dentro da tradicional Igreja da Madeleine de Paris. Isso não é pouco. A Bahia e o Brasil precisam tirar o chapéu para esse artista. Eu fico de joelhos para Robertinho. Sua resistência é a sua própria existência. Como a gente gosta de brincar: Madeleine à Paris vai abalar Paripe.

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