InícioEditorialPor que Janja incomoda? Críticas provocam debate sobre papel de primeira-dama

Por que Janja incomoda? Críticas provocam debate sobre papel de primeira-dama

Janja Silva teve papel de destaque durante a campanha de Lula

“Ela estava ali sentada, mas ela não é presidente do PT, ela não é líder política, ela não é presidente de partido, enfim, por que ela estava ali? Qual era o papel da primeira-dama?”. Quando a jornalista Eliane Cantanhêde fez esse comentário sobre a futura primeira-dama do Brasil, a socióloga Janja Silva, em uma análise ao vivo, na GloboNews, no último dia 11, talvez ela não imaginasse o que viria a acontecer a partir daí.

Duramente criticada por movimentos feministas e lideranças políticas, a fala de Eliane pode ter gerado repercussão maior, mas está longe de ser a única. Nos dias que se seguiram, outros analistas – e mesmo editorialistas de grandes veículos nacionais – foram pelo mesmo caminho: defendem, em novembro de 2022, que uma mulher “encontre um papel compatível com a função”.

Mesmo antes da eleição, durante a campanha, já havia quem reclamasse de uma suposta influência ou presença exacerbada de Janja. Agora, porém, a discussão escalou: para uma parcela da sociedade, estar presente em certos eventos políticos nem mesmo seria o papel de uma primeira-dama. Mas qual seria, afinal, a função de uma primeira-dama? Sabe-se, por exemplo, que essa posição nem mesmo existe na legislação, como ressalta a pesquisadora Maria Inês Ferreira, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Portanto, não há competência definida, nem remuneração. 

“O que há é uma compreensão do papel da esposa de um governante na sua gestão. Mas esse papel é subjetivo, depende da pessoa que está naquela posição no momento. Sem competência atribuída legalmente e remuneração, trata-se de uma opção, de voluntarismo. A mulher pode ou não exercer atuação política”, diz. 

Ao longo dos anos, o Brasil teve primeiras-damas atuantes, cada uma de seu jeito. A ideia sobre o que se espera delas, porém, tem aspectos complexos envolvidos. Não é de se descartar, por exemplo, que o país nunca teve um primeiro-cavalheiro. Quando Dilma Rousseff, a única presidenta eleita até então, assumiu em 2011, ela já era divorciada. 

Agora, como destaca a professora Maria Inês Ferreira, uma situação semelhante pode acontecer. No Rio Grande do Sul, o governador eleito, Eduardo Leite (PSDB) é homossexual e tem um namorado. “Além do mais, a/o companheira/o não pode ser indicada para qualquer posto no governo, uma vez que isso pode ser enquadrado na situação de nepotismo. Trata-se de uma proteção para os governados contra os poderes do Estado”, pondera. 

República
A ideia de uma primeira-dama começou nos Estados Unidos, ainda no século 19. A primeira vez que o termo ‘first lady’ foi usado foi em 1838, numa referência a Martha Washington, esposa de George Washington. No Brasil, porém, a historiadora Dayanny Rodrigues, doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que a ideia de um ‘primeiro-damismo’ nasce no país com a República, ainda que não dê para desconsiderar a atuação de mulheres como a própria imperatriz Leopoldina, esposa de D. Pedro II. 

O ‘primeiro-damismo’ é um conceito desenvolvido pela própria Dayanny em sua tese de doutorado, defendida no ano passado. De acordo com ela, se refere a um conjunto de práticas exercidas pelas esposas de governantes no Executivo. O marco temporal para identificar essas ações é na atuação de Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, ainda na década de 1930.

Darcy Vargas é apontada pela pesquisadora como pioneira no ‘primeiro-damismo’ brasileiro (Foto: Reprodução)

“Antes de Darcy, não havia ainda, na cultura política brasileira, uma preocupação em moldar essa figura política da esposa do presidente, que seria a primeira-dama”, explica Dayanny. 

Essa atuação se cristaliza com a criação da Legião Brasileira de Assistência, em 1942. As ações da primeira-dama passaram a fazer parte de um escopo de políticas – não de políticas públicas, mas de assistência, o que a historiadora também considera que se torna uma política de estado.

A partir daí, como ‘primeiro-damismo’ já vigente, essas mulheres que passam a ocupar o cargo, em geral, recorriam a dois possíveis caminhos: um chamado por Dayanny de ‘primeiro-damismo estratégico’, enquanto o outro foi batizado de ‘primeiro-damismo tático’. 

“O estratégico está emparelhado ao projeto político desenvolvido pelo marido. O conjunto de ações que ela desenvolve faz parte daquele jogo”, afirma. Já no tático, existem ações consideradas pela pesquisadora como desviantes. Por isso mesmo, geram protagonismo para essas mulheres, tirando-as da invisibilidade. 

Seria o oposto do imaginário social que coloca a primeira-dama atrás da figura do esposo, como quem só vai aparecer quando for conveniente. “A figura social (da primeira-dama) é criada numa sociedade machista patriarcal, então, consequentemente, ela é cruel com essas mulheres. A própria noção de que criamos expectativas em relação à atuação de Janja aprisiona. Um conjunto da sociedade espera que ela siga o padrão de ‘primeiro-damismo estratégico’, enquanto outra parcela mais progressista espera que ela rompa”, analisa Dayanny. 

Antecessoras
Uma primeira-dama não está dentro de uma bolha. Pelo contrário: elas sempre dialogam com as emergências de seu tempo. Na época de Darcy Vargas era urgente amparar os desabrigados. Na redemocratização, após a ditadura militar, porém, a conjuntura política trouxe novas necessidades. 

Primeira-dama entre 1990 e 1992 e administradora de formação, Rosane Collor, além de ser presidente de honra da LBA, também foi uma das poucas que se tornou presidente executiva da entidade. Sob a gestão dela, porém, a LBA passou por um escândalo de corrupção e Rosane foi afastada. Itamar Franco, que assumiu após o impeachment de Fernando Collor, era divorciado e não teve primeira-dama. 

Já na administração de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, veio Ruth Cardoso, largamente conhecida por ter criado um novo modelo de atuação.

“Nos últimos dias, teve reportagem dizendo que ela não teve atuação nenhuma, mas não é assim. Ruth disse ‘não’ às antigas práticas assistencialistas e defendeu a assistência social como política de estado, não de governo”, explica Dayanny.

Professora de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), Ruth teria trazido esse capital para sua atuação ao extinguir a LBA e criar a Comunidade Solidária, programa social que foi substituído pelo Fome Zero. Apesar de protagonista, nem sempre ela é lembrada dessa forma. 

Mesmo na fala de Cantanhêde, a jornalista alega que Ruth era um modelo a ser seguido porque não tinha protagonismo. “Se tinha, era a quatro chaves, dentro do quarto do casal”, disse, na ocasião. Para a historiadora Dayanny Rodrigues, não poderia ser mais inverso. “A historiografia também é machista, patriarcal e deixa todo o bônus para FHC. Mas foi semente de Ruth”, reforça. 

(Fotos: Reprodução)

Em seguida, vem Marisa Letícia, esposa de Lula, em 2003. Para muitos, ela foi uma primeira-dama reservada. No entanto, segundo a historiadora, assim como Ruth não havia deixado de ser antropóloga quando o marido assumiu a presidência, Marisa não deixou de ser militante. Casada com Lula desde 1974, ela esteve ao seu lado desde o início, na formação do PT. 

Dayanny defende, assim, que Marisa também fez um ‘primeiro-damismo tático’, ao trazer rupturas.  Sua militância seria, na avaliação da pesquisadora, sua marca de ruptura. Pouco se fala, hoje, que Marisa tinha uma sala no Planalto ao lado do gabinete de Lula – os dois cômodos eram interligados por uma porta. 

“No início de toda reunião ministerial, Lula dizia: ‘vamos esperar Marisa’. O que diferencia Marisa de Ruth é a trajetória pessoal. Ruth era acadêmica, foi a grande fundadora da antropologia urbana na USP. Marisa era militante. Não podemos colocar isso numa balança e dizer que uma era melhor que a outra”, pondera. 

Já Marcela Temer e Michelle Bolsonaro, por sua vez, representariam tentativas de retorno ao ‘primeiro-damismo estratégico’. Marcela virou até meme após uma reportagem que a colocou como ‘bela, recatada e do lar’, na revista Veja, em 2016, logo após o impeachment de Dilma Rousseff. Já Michelle, em exercício desde 2019, ficou conhecida por passar a imagem da esposa evangélica, que está ali para dar sustentabilidade ao marido. 

(Fotos: Reprodução)

Uma das características dessa abordagem estratégica é atrelar o nome da primeira-dama a uma casa social. Marcela faz isso ao lançar o programa Criança Feliz, ainda em 2016. Já Michelle discursou em libras na posse de Jair Bolsonaro, algo que nunca havia acontecido até então, deixando a sensação de que desenvolveria ações para as pessoas com deficiência. 

Uma das ações da primeira-dama em exercício foi promover, no ano passado, um natal solidário no Palácio da Alvorada. “Essa era uma prática realizada por Darcy Vargas e foi assim por 15 anos. Depois, foi seguido até o período da ditadura militar”, pontua a historiadora. 

Estrangeiras
Em entrevista ao Fantástico, no último domingo (13), Janja citou duas primeiras-damas estrangeiras como exemplos que lhe inspiram: a argentina Eva Perón, que ocupou a posição entre 1946 e 1952, e a americana Michelle Obama, que esteve na função entre 2009 e 2017. 

Eva Perón foi primeira-dama da Argentina até sua morte, em 1952, em decorrência de um câncer, aos 33 anos (Foto: Reprodução)

Apesar de representar realidades sociais e econômicas distintas, a professora Maria Inês Ferreira, da UFRB, destaca que ambas foram primeiras-damas fortes, que atuaram junto com seus companheiros no desenvolvimento das agendas do governo.

“Se a admiração de Janja permite alguma leitura, é que suas inspirações indicam uma presença vigorosa no governo, influenciando as ações governamentais, a partir de uma perspectiva social”, analisa.

Ao mesmo tempo, para a historiadora Dayanny Rodrigues, a comparação entre duas personalidades que viveram ou vivem tempos históricos diferentes pode ter complicações. Eva, por exemplo, ainda que tenha alçado voos, se tornado protagonista e até cogitado se candidatar à vice-presidência, por vezes é criticada porque promovia o assistencialismo. Mais próxima na linha temporal de Darcy Vargas, ela seria mais parecida com essa primeira-dama brasileira. 

“Naquela temporalidade histórica, era uma prática comum, era cabível. Hoje, a gente rechaça e entende a importância da política pública. Mas nas décadas de 1930, 1940, 1950, não era assim. Quando Janja cita Eva, acredito que ela não traz à tona essa prática assistencialista, mas o protagonismo de Eva”, analisa. 

Já Obama seria o exemplo de uma primeira-dama que praticou o que a pesquisadora chama de ‘primeiro-damismo tático’, segundo a pesquisadora. Sem assumir nenhum cargo na administração de Barack, Michelle Obama conquistou visibilidade para as ações que promoveu na saúde e pela alimentação. Advogada formada em Princeton e Harvard, a leitura é de que ela teria se posicionado como alguém que não precisa ser um braço do estado para ser atuante. 

Em 2014, a então primeira-dama dos EUA, Michelle Obama, endossou a campanha pela libertação de 276 meninas que haviam sido sequestradas em uma escola na Nigéria, por um grupo terrorista (Foto: Reprodução)

Nos Estados Unidos, outras mulheres que estiveram na posição de primeira-dama já assumiram protagonismo político antes de Obama. Durante a administração de Bill Clinton, entre 1993 e 2001, Hillary Clinton ganhou visibilidade por lutar pela igualdade de gênero. Em 2000, se tornou a primeira senadora do estado de Nova York. Anos depois, ela viria a ser secretária de estado dos EUA e candidata à presidência em 2016. 

Incômodo
O incômodo de Janja chama a atenção porque há poucos precedentes nesse sentido. Ainda assim, Dayanny cita outros dois exemplos de mulheres que incomodaram a sociedade enquanto foram primeiras-damas. Era o caso de Nair de Teffé, caricaturista e primeira-dama entre 1913 e 1914, cujas roupas e posicionamentos causavam polêmica, e de Maria Thereza Goulart, esposa de João Goulart (administração de 1961 a 1964).

(Fotos: Reprodução)

“Um fato que é de aprisionamento das primeiras-damas é a estética. Maria Thereza saía no jornal todos os dias, na maior parte das vezes falando de Dior, que ela usava. Eram comparações com Jackie Kennedy, comparações de quem seria a primeira-dama mais bonita do mundo. A beleza era usada para enaltecer e também para criticar, porque ela era mais jovem que Jango”, conta. Quando João Goulart assumiu a presidência, tinha 42 anos; a primeira-dama, por sua vez, tinha 25 anos. 

Por que Janja incomoda? Entre as pesquisadoras ouvidas pela reportagem, há algumas possibilidades. A própria polarização política que o Brasil vive indica que isso aconteceria. Ou seja: qualquer que fosse o perfil da futura primeira-dama, ela seria criticada por parte da sociedade. Segundo Maria Inês Ferreira, um dos motivos viria da disputa de poder dentro do próprio círculo próximo ao governo. 

“Mas, certamente, ela incomoda porque o Brasil é um país com forte viés machista e uma mulher forte, atuante, independente ainda incomoda demais. Lembremos de Dilma Rousseff. A despeito de críticas técnicas à sua gestão, ela foi atacada de modo violento por ser mulher. Um presidente homem não seria agredido como Dilma”, reforça. 

Janja, porém, é militante do PT desde a década de 1980. A ex-deputada Manuela D’Ávila, que foi candidata à vice-presidente nas eleições de 2018, foi uma das pessoas que ressaltou isso. 

“De onde esse pessoal tirou a utopia reacionária de que uma militante vai deixar de militar porque seu marido ocupou uma função determinada? O Alvorada é tão bom para escrever um texto feminista, organizar uma grande manifestação ou descansar uma bandeira depois de uma passeata quanto qualquer outra residência desse nosso Brasil”, escreveu Manuela, que é jornalista e pesquisadora. 

Para a historiadora Dayanny Rodrigues, não é estranho que parte dos comentários machistas venha também de mulheres. Seria, para ela, um  reflexo de uma sociedade patriarcal que se perpetua por práticas que não são apenas de homens. 

Assim, quando há comentários de que a primeira-dama está ‘aparecendo demais’, a historiadora acredita que a compreensão é de que, mesmo que a mulher – no caso, Janja – tenha um capital intelectual construído antes do marido, o que se espera é que ela apague esse passado e seja apenas a esposa do presidente da vez. 

“Por mais que a gente critique o papel da primeira-dama, quando alguém assume, a gente espera a bela, recatada e do lar. Aparentemente, Janja não tem esse perfil apenas, apesar de também ter. É lamentável (a crítica)”, observa.

Por isso, os questionamentos acerca de Janja trazem incertezas. “Alguns perguntam se ela vai ser mais como Michelle (Bolsonaro) e Marcela (Temer) ou se vai ser mais como Ruth Cardoso. Eu espero que ela seja mais como Janja, que a gente não precise mais ficar enquadrando ela e outras primeiras-damas que venham como exemplo das que já foram, porque a gente aprisiona a atuação dessas mulheres”, acrescenta. 

Na Bahia, na avaliação da professora de ciência política Maria Inês Ferreira, é possível que a atuação da futura primeira-dama – a agrônoma Tatiana Velloso, esposa do governador eleito Jerônimo Rodrigues – também siga o mesmo caminho. 

Doutora em Geografia, Tatiana é pró-reitora de extensão da UFRB, onde também é docente na área de políticas de desenvolvimento rural. “Não imagino qual será o papel da primeira-dama baiana, mas, independente de qual ele venha a ser, a sua trajetória deve influenciar positivamente a próxima gestão do governo da Bahia”, completa a professora.

Conheça as primeiras-damas da história recente do Brasil

Rosane Collor (1990-1992): a então esposa de Fernando Collor era administradora e se tornou presidente da LBA. Na sua gestão, a entidade enfrentou um de seus maiores escândalos de corrupção. 

Ruth Cardoso (1995-2002): esposa de Fernando Henrique Cardoso, era professora da Universidade de São Paulo. Uma das mais reconhecidas intelectuais da antropologia brasileira, extinguiu a LBA e deu início a uma nova filosofia com a Comunidade Solidária. Morreu em 2008. 

Marisa Letícia (2003-2010): esposa de Lula, ingressou na vida política como militante do movimento sindical ao lado do marido. É conhecida por ter costurado a primeira bandeira do PT, em 1980. Foi ré na Operação Lava-Jato, mas as acusações foram extintas após sua morte, em 2017. 

Marcela Temer (2019-2018): esposa de Michel Temer, foi embaixadora do programa Criança Feliz. Inspirou o meme ‘bela, recatada e do lar’. Bacharel em Direito, chamou atenção em um episódio em 2018, quando pulou em um lago no Alvorada para salvar seu cachorro. 

Michelle Bolsonaro (2018-2022): esposa de Jair Bolsonaro, discursou na Língua Brasileira de Sinais (Libras) durante a posse do marido. Evangélica, foi acusada de intolerância religiosa em 2022, ao compartilhar um vídeo de Lula recebendo um banho de pipoca. Ela escreveu: “isso pode né! Eu falar de Deus não (sic)”. 
 

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