Já imaginou ter uma máquina que faz tudo dentro de casa? Passa, lava, cozinha, ensina, cuida do estoque da dispensa, faz o papel de psicóloga, motorista, paga conta e ainda encontra tempo para te fazer um carinho… Provavelmente você tem até uma dessa em casa, mas a chama de mãe.
Antes de dar aquele presentinho para sua mainha no dia dedicado a ela, pense comigo: se todas as mães fossem remuneradas pelo acúmulo de funções que sequer são delas, quanto será que elas ganhariam? Isto sem contar horas extras, acúmulo de função, tempo integral…
É um assunto tão complexo que muitos economistas evitam arriscar um salário base para uma mãe que junta diversas profissões nas suas funções domésticas, independentemente se ainda trabalham fora de casa ou não. Procuramos seis profissionais de economia, muitos doutores na área, mas ninguém arriscou um palpite. Não que eles não quisessem, muito pelo contrário. É que a carga horária e o acúmulo de funções podem gerar cifras surreais até mesmo para cientistas econômicos. O que sua mamãe faz diariamente e só ganha a alcunha de ‘guerreira’ é conhecido como ‘trabalho invisível’, ‘economia do cuidado’ ou, simplesmente, ‘trabalho não remunerado’. E uma coisa é certa: se ela ganhasse pelo que trabalha, mudaria até o PIB brasileiro.
“A literatura trata duas formas de pensar valoração ao trabalho reprodutivo não remunerado: uma pela média horária salarial de uma empregada doméstica e outra a média da remuneração horária considerando a qualificação da pessoa”, explica a doutora Luana Passos, economista e professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia e da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro. “Com base nessas duas formas, estima-se que se aumentaria o Produto Interno Bruto (PIB) entre 10% a 15% devido ao trabalho reprodutivo não remunerado”, complementa.
Incalculável
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o PIB brasileiro fechou 2022 em R$ 9,9 trilhões. Se o trabalho das mães fosse remunerado e inserido no PIB, este número chegaria a R$ 11 trilhões. “A ‘economia dos cuidados’ tem colocado em relevo como as atividades reprodutivas são essenciais para a manutenção da sociedade, e se valoradas seria um valor expressivo em termos de PIB. Isso mostra que há uma grande contribuição das mulheres que não é valorizada socialmente, com base na ideia que essas funções são feitas por amor e por uma obrigação familiar”, completa Luana, que está à frente de diversas pesquisas sobre trabalhos não remunerados feminino.
No fórum Women’s 20 Outreach, realizado em São Paulo em 2018, o Instituto Locomotiva mostrou uma pesquisa sobre quanto seria o salário de uma mãe dona de casa, com todo seu acúmulo de funções, se fosse remunerada. Preparadas para saber?…
Segundo o estudo, que teve como cálculo todas as funções exercidas pela mulher, sem contar as funções profissionais fora do lar, uma mãe não remunerada ganharia, anualmente, R$ 1 trilhão! Difícil imaginar, né? Nem a Mega Sena da virada pagaria isso tudo. A pesquisa ainda aponta que os ‘afazeres domésticos’ tomam uma média de 92 horas destas mulheres, todo santo mês.
Vejamos…
Para se ter uma ideia, o diretor executivo (CEO, sigla em inglês) mais bem pago no Brasil, Sergio Rial, do Banco Santander, recebeu R$ 59 milhões em 2021, segundo a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). E o CEO da Amazon, o norte-americano Andy Jassy, recebeu R$ 1,1 bilhão no mesmo ano, segundo a AFL-CIO, uma organização sindical dos Estados Unidos.
Vamos fazer umas continhas simples e trazer para nossa realidade, estabelecendo um padrão diário na rotina de uma mãe com dois filhos em idade escolar. Verificamos o valor médio de cada função acumulada desta genitora em sites especializados e tiramos quanto ela merecia ganhar com esta junção de profissões. Vamos lá:
Um modelo de mãe bastante comum, do início ao fim do seu dia, tem a seguinte programação: assim que acorda, faz o café dos filhos (e do marido) e leva a gurizada para a escola (motorista particular). Retorna, arruma a casa (diarista), cozinha (cozinheira), passa roupa (passadeira), faz o papel de estoquista para saber o que está faltando na casa e pega os rebentos.
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Depois, brinca com a turma (recreadora), ensina o dever de casa (professora particular) e ainda encarna a psicóloga para o filho adolescente. De quebra, ainda controla as finanças (contadora) e controla os gastos (economista). Se juntarmos a diária de cada profissão citada, esta mãe deveria ganhar, neste único dia de trabalho, uma média de R$ 965. Sem contar hora extra e o acúmulo de função.
“Não é amor, é trabalho doméstico não remunerado. Nem sei quantificar meu trabalho diário, mas vamos lá. Considerando que trabalhamos três turnos, creio que deveria ganhar uns 10 salários mínimos, pelo menos. Gerenciamos a casa, né? Arrumar, limpar, lavar, cozinhar, passar, gerenciar semanalmente os alimentos perecíveis, comida e lanches balanceados, atividades escolares e ainda ser exemplo o tempo todo. Nem sei quantificar meu trabalho, mas vi que é como se tivéssemos dois empregos e meio”, propõe Caetana Vieira, que não trabalha remuneradamente desde que sua filha nasceu, há quatro anos. Ela é casada.
Letícia Santos foi desligada do emprego no início da pandemia da covid-19. Decidiu então empreender, abrindo a própria empresa, uma loja online de bijus. Ela consegue trabalhar por conta própria, está feliz trabalhando em home office, mas não significa que suas tarefas do lar não a sobrecarreguem.
“Sim, sobrecarrega. Tenho que administrar o meu tempo com atividades escolares, organizar a casa, organizar a rotina e empreender. O que incomoda é a dependência, né? Se eu não fizer, não funciona. Nós, mães, deveríamos receber uns R$ 3 mil para cada função que desempenhamos administrando a casa”, declarou Letícia, mãe de dois meninos e casada.
Para uma mãe solo, a sobrecarga deste emprego invisível é ainda mais difícil. Tatiane Coelho é professora, trabalha meio-período com outras crianças, mas no turno seguinte precisa fazer o papel que poderia ser dividido com a figura paterna, mas não é.
“Como é minha rotina? Eu saio correndo do meu trabalho, vou buscar Pedro na escola, venho direto pra casa dar almoço, depois leva no karatê, faz atividades escolares… É impossível dizer quanto eu deveria ganhar se fosse para remunerar toda esta rotina. Deveria ter um auxílio maternidade, né? Para as mães que cuidam de tudo. Tenho certeza que esta sobrecarga seria melhor se tivesse uma rede de apoio ou o pai presente, né”, desabafa Tatiane, que precisou interromper a entrevista. “Podemos voltar a conversar depois? O pai de Pedro esqueceu de pegá-lo na escola e vou ter que ir lá pegar”, avisou.
Finalmente chegamos (novamente) a um denominador comum: o patriarcado e o machismo social. Toda esta rede em que a mulher acaba fazendo o papel não remunerado da família mostra o quanto a sociedade foi feita para o homem crescer financeiramente, enquanto a mulher ‘cuida’ da casa e dos filhos.
IBGE
Em 2020, o IBGE divulgou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) sobre Outras Formas de Trabalho, abrangendo dois assuntos que nos interessam mais: afazeres domésticos e cuidado de pessoas, como os filhos. Nestes dois quesitos, a mulher dedica uma média de 21 horas semanais, enquanto o homem não ultrapassa as 11 horas. No Nordeste, a taxa de afazeres domésticos atinge 92,2 % delas, contra 69,2% deles, a maior diferença no país. A pesquisa também deixa claro que, neste universo masculino, a maioria declarou fazer trabalhos domésticos pelo fato de morarem sozinhos. Entre os afazeres, o único em que o homem supera a mulher é o “fazer pequenos reparos ou manutenção do domicílio”, 58,1% para eles, contra 30,6%.
Presidenta da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia (OAB-BA), Daniela Portugal pontua que a sociedade impõe uma desvalorização da profissão ou trabalho em que a mulher desempenha na grande maioria das vezes, seja como administradora do lar ou de professora, por exemplo. E isso abraça, inclusive, a questão de raça e gênero.
“Um sistema econômico que pressupõe desigualdade para funcionar, distribui, também desigualmente, a valorização profissional. Diante desse cenário, não basta que a mulher deixe os afazeres do ambiente privado para disputarem o concorrido mercado de trabalho na vida pública. Antes disso, precisamos rever as estruturas (especialmente de gênero, raça e classe) que definem os nossos valores e, como consequência, como valoramos o trabalho e seu desempenho entre os gêneros”, disse Daniela, que é também professora criminalista da Ufba e feminista.
Mudança
Na Espanha, esta estrutura já começou a ser desmontada. Em março deste ano, a justiça do país europeu determinou que uma mãe recebesse do ex-marido 27 anos de salário pelos trabalhos domésticos da mulher, que se dedicou exclusivamente a cuidar da casa e das duas filhas do casal. O ex terá que pagar mais de 200 mil euros, cerca de R$ 1,1 milhão, sem contar uma pensão fixa para as filhas.
No Brasil, a lei ainda é branda no quesito reconhecimento. No Código Civil, existem algumas proteções para a mulher, como direito à pensão alimentícia, quando ela se dedicou exclusivamente aos afazeres do lar, se afastando do mercado de trabalho e desamparada financeiramente no divórcio.
Há também a possibilidade de aposentadoria, por tempo de contribuição, mas tem um pequeno detalhe: “Há possibilidade de percepção de benefício previdenciário de aposentadoria, mas o Seguro Social pago pela Previdência Social tem caráter contributivo, ou seja, é necessário ter pelo menos 15 anos de contribuição ao INSS. A expressão ‘dona de casa’ era usada para a mulher indicando sua dedicação plena às atividades do lar, mas ela esconde um preconceito, um certo estigma, que desvaloriza essa ocupação”, especifica Cinzia Barreto de Carvalho, advogada e professora de Direito da Unijorge.
Para a mulher que se ocupa das atividades de casa, é possível fazer contribuição ao INSS com alíquota de 20% sobre o valor do piso, de um salário mínimo até o teto do INSS, ainda segundo Cinzia. Ou seja: é preciso achar grana em algum lugar, mesmo sendo um trabalho não remunerado.
Merecimento
Mariana Martins é enfermeira e doula de formação, mas decidiu se dedicar ao trabalho não remunerado. Ela diz estar feliz, pois o marido divide de certa forma as tarefas. Porém, admite que a sobrecarga é grande, pois são três filhas e ainda ajuda na pousada dos pais, onde atualmente mora com o companheiro e as pequenas.
“Acho que uns R$ 12 mil por mês estava bom. Sou bem feliz sendo dona de casa. Não é algo que quero ser o resto da minha vida e por isso mesmo tenho uma loja online de roupa infantil. Faço artesanato por hobby e terapia. Não sei se existe um valor real para tudo o que faço. Poderíamos colocar qualquer valor como salário e não sei se seria real ou não. A profissão de dona de casa é muito negligenciada, discriminada e invisível”, diz, na esperança de um complemento em sua carteira de trabalho que não virá, apesar do merecimento.