O bloco afro Ilê Aiyê, que em 2024 completará 50 anos de existência, virou o centro de acirrado debate na internet, nesta quinta-feira (02), depois que o presidente da agremiação, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, afirmou, em entrevista, ao Blog do Marrom, do CORREIO, que pensava em flexibilizar as regras da entidade e permitir o desfile de pessoas brancas no próximo Carnaval. Tradicionalmente, o Ilê é conhecido como espaço de resistência e enaltecimento das pessoas pretas.
A fala repercutiu como rastilho de pólvora nas sempre muito polarizadas redes sociais. De um lado, personalidades negras se posicionaram logo cedo questionando o anúncio. Do outro, houve quem apoiasse e quem criticasse duramente a ideia. As mensagens mais compartilhadas eram as que traziam críticas. Diante da repercussão, o Ilê desistiu da ideia. Vovô, por sua vez, explicou que sua fala na entrevista ‘soou precipitada’: “Em respeito à luta e a tradição do Ilê, nestes 50 anos, ainda não é chegada a hora dessa abertura”.
Em nota, a direção do bloco afro disse que a flexibilização comentada por Vovô na entrevista não era uma decisão oficial. E destacou a importância da agremiação e o compromisso de manter-se como um reduto de resistência dedicado ao povo preto no Carnaval de Salvador. A diretoria chamou também a atenção para a necessidade de se levantar uma reflexão sobre o fato do enaltecimento do bloco ir além do período do Carnaval e afirmou que a tradição será mantida. “Os brancos serão sempre bem-vindos nas festas, shows e ensaios do bloco. Mas o desfile do ‘Mais Belo dos Belos’ no Carnaval de Salvador tem a sua beleza no agrupamento festivo e exaltação de pessoas de pele preta e assim permanecerá sendo”, diz um trecho do texto da nota.
Debate nas redes
Diante dessa tradição, a possibilidade do Ilê Aiyê abrir para as pessoas brancas desfilarem, levantou diversas discussões sobre espaços de poder, privilégios e luta contra o racismo. A cantora Teresa Cristina, a jornalista e apresentadora Rita Batista e os atores Sulivã Bispo e Luana Xavier se pronunciaram logo cedo sobre o caso. Na internet, muita gente também especulou que o motivo para o Ilê passar a aceitar pessoas não negras no bloco seria financeiro. Ainda em fevereiro, durante as preparações finais para o Carnaval, Vovô contou que o aumento de preços de fornecedores, músicos e tecidos dificultou a saída do bloco este ano. Mesmo assim, o Ilê deu um show na avenida e foi reverenciado como um dos desfiles mais bonitos da festa.
O jornalista Osmar Marrom Martins, autor do Blog do Marrom, diz que o motivo para a possibilidade do Ilê se abrir não é financeiro e a flexibilização do bloco é uma discussão antiga. “Vovô pensou em fazer isso nos 50 anos do bloco, no Carnaval de 2024. Não seria uma abertura para todos os brancos, mas uma flexibilização por conta dos muitos pedidos que ele vem recebendo. Porém, as pressões foram muito grandes”, acrescenta.
Apesar do bloco ter anunciado a desistência de abrir o desfile para pessoas brancas, o debate se instaurou. A maioria dos blocos afro aceita a presença de brancos. No próprio Ilê é possível encontrar alguns não negros, geralmente pardos, mas a entidade é majoritariamente preta, e a única que ainda segue firme nesse propósito.
A fundadora do bloco afro Ara Ketu, Vera Lacerda, defende a flexibilização. “Criei o Ara Ketu porque, na época, tentei fazer parte do Ilê e me disseram que eu não era negra o suficiente para poder desfilar. Então, criei um bloco onde todos que se identificam com as causas negras poderiam participar. Sou a favor dessa abertura. Fico feliz”.
Um internauta que aprovou a ideia logo que ela foi divulgada, destacou a importância da miscigenação. “Há anos, Menininha do Gantois abriu para brancos e revolucionou o Candomblé. Espero que a decisão seja da mesma natureza que anos atrás”.
Mas, parte considerável do público acredita que a presença de pessoas brancas vai descaracterizar o bloco e comprometer a identidade e a linguagem do Ilê. Para a professora Isabel Nascimento, 55 anos, mais do que uma questão estética, a discussão envolve uma reafirmação cultural. “Negros foram e ainda são historicamente excluídos de muitos espaços. O Ilê representa um local de acolhimento e empoderamento da nossa gente. É uma referência, um espaço nosso, onde não temos que disputar com brancos. Então, sou contra a abertura. Existem vários blocos miscigenados. O Ilê é afro”, afirmou.
A atriz e apresentadora Luana Xavier também se manifestou. “Acho bom tomar logo meu remédio de pressão, porque talvez a próxima notícia seja que mulheres não negras poderão concorrer à Deusa do Ilê”, escreveu, em referência ao concurso anual que elega a Deusa do Ébano, a rainha do Ilê, que surgiu justamente para enaltecer a mulher preta, sempre preterida em concursos de beleza de padrões eurocêntricos.
Espaço do povo preto
Uma internauta e leitora do CORREIO comentou a polêmica no perfil do jornal no Instagram e concordou com a decisão do bloco de desistir da ideia de flexibilizar: “Brancos como eu têm espaço em todos os lugares. O Ilê tem que seguir sua tradição”. Outra internauta publicou que tinha o sonho de sair no Ilê, mas entende a restrição. “Acompanho há mais de 40 anos. Mas entendi há muito tempo as razões, justíssimas, de não permitir o ingresso de pessoas brancas. Continuo acompanhando com o coração batendo forte de amor e admiração. Salve o meu querido Ilê!”, enfatizou.
O estudante Daniel Sena, 23 anos, fez uma brincadeira. “Imagine, o povo branco, maioria turista, cantando ‘Que bloco é esse?’. Dizendo ‘somos crioulo doido, somos bem legal, temos cabelo duro, somos Black Power’. Não tem como não rir”, comentou, fazendo referência à música tema do Ilê Aiyê, composta por Paulinho Camafeu, em 1974, para o primeiro desfile do bloco, em 1975.
O ator Sulivã Bispo brincou com a personagem Koanza, mulher de forte identidade negra que interpreta nos palcos. “Me ligou chorando, ela está sem acreditar”, disse, ao saber da possibilidade de abrir o Ilê para pessoas brancas participarem.
Sulivã destacou a importância do bloco como local de referência para o povo preto, onde turbantes, tecidos, cores e outros elementos da cultura africana podem ser usados sem julgamentos, ataques ou comentários racistas. O ator também afirmou que o ‘Mais Belo dos Belos’ é espaço para celebrar a beleza negra.
“O Ilê é quilombo. Ele é a extensão do terreiro de candomblé, por isso, é um bloco de negão. É um processo de reafirmação da nossa ancestralidade e da nossa autoestima, através da simbologia das danças, das vestes e dos cantos. Quando a gente abre para outra cultura, a gente perde esse lugar de pertença e o resgate dessa autoestima. Enquanto houver racismo a gente vai precisar de um bloco exclusivamente afro”, opinou Sulivã.
Homenagens à negritude
Depois de dois anos de pandemia de covid-19, o Ilê Aiyê voltou às ruas para desfilar no Carnaval deste ano, com uma honenagem ao centenário do angolano Agostinho Neto. Conhecido como Manguxi, Agostinho foi presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola e responsável pela libertação do país, tendo presidido Angola. Manguxi foi contemporâneo de Hilda Dias dos Santos, mais conhecida como Mãe Hilda Jitolú, ialorixá que é a mentora espiritual do Ilê.
O bloco tem tradição em homenagear personalidades ou momentos das história em perpectiva mais afrocentrada, ou seja, com foco em heróis, heroínas e momentos de protagonismo negro.
Segundo um perfil do bloco na Enciclipédia Itaú Cultural, desde o primeiro desfile, o Ilê busca a valorização de populações negras da África e da diáspora africana nas Américas. O bloco também influenciou ao longo dos anos diversos artistas como Gilberto Gil, Margareth Menezes e Carlinhos Brown.
Confira na íntegra o posicionamento da diretoria do Ilê Aiyê
Ao levar a imagem e a ideologia do bloco Ilê Aiyê para o mundo nos últimos 49 anos, o presidente da entidade, Antônio Carlos Vovô, tem plena certeza do quanto a história e a luta do Ilê Aiyê revolucionaram e vem revolucionando a mentalidade de pretos e brancos do Brasil e de fora dele. Dessa consciência e vivência surgiu a reflexão sobre um dia atender aos inúmeros pedidos de brancos que gostariam de desfilar no Ilê Aiyê, e esse é o pano de fundo para as últimas declarações dadas por Vovô para o podcast Bahiacast e para a Coluna de Marrom [Osmar Marrom Martins, colunista do Blog do Marrom, do CORREIO].
A atenção a esse tema, porém, não se sobrepõe à consciência que a diretoria do bloco Ilê Aiyê tem sobre a importância do seu papel, da sua luta e da sua tradição. E, sobretudo, acerca do compromisso de manter-se como um reduto poderoso de resistência dedicado ao povo preto no Carnaval de Salvador.
Assim, o bloco Ilê Aiyê esclarece que ao considerar tal possibilidade – que veio à tona sobretudo com a intenção de levantar a reflexão sobre um enaltecimento do bloco muitas vezes restrito ao período do Carnaval – o presidente Antônio Carlos Vovô em nenhum momento afirmou ser essa uma decisão oficial do bloco.
Em 2024, o Ilê Aiyê completa 50 anos de trajetória e, mais do que nunca, esse será o momento de honrar suas conquistas.
Os brancos serão sempre bem-vindos nas festas, shows e ensaios do bloco. Mas o desfile do ‘Mais Belo dos Belos’ no Carnaval de Salvador tem a sua beleza no agrupamento festivo e exaltação de pessoas de pele preta e assim permanecerá sendo.
Três fatos sobre o Ilê
1. O desfile do “Mais belo dos belos” começa muito antes do bloco entrar na avenida, mais precisamente ainda na ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade. A comunidade, associados e visitantes assistem à cerimônia de abertura dos caminhos, quando são feitos pedidos de permissão aos donos da rua, de paz e de felicidade aos orixás. O cortejo sai em seguida. A saída do Ilê é um dos momentos de destaque do Carnaval de Salvador e sempre conta com a presença de artistas e outros famosos que são admiradores do bloco ou representantes da cultura negra;
2. Em 1979, foi criado o concurso para a escolha da Deusa do Ébano (nome dado à Rainha do Ilê Aiyê), em contraponto aos tradicionais concursos de beleza, onde a maioria das candidatas premiadas são não negras. A rainha do Ilê é eleita durante a Noite da Beleza Negra, evento realizado antes do Carnaval e que enaltece as mulheres pretas. O que define a vencedora é a força da candidata, que envolve a plateia e os jurados durante a apresentação, e não padrões de idade ou de medidas estéticas;
3. Em 1985, o bloco trouxe outra novidade com a criação do Grupo de Dança do Ilê Aiyê, entidade de referência da cultura negra e que está na ativa até hoje. A Senzala do Barro Preto, sede da Associação Cultural Ilê Aiyê, no Curuzu, costuma ficar lotada durante os ensaios de Verão que antecedem o Carnaval;