A morte da quilombola Dominga Fernando de Castro, aos 52 anos, completou um ano em novembro. Foi no primeiro dia do mês da consciência negra que a kalunga se acidentou em um pau de arara na Chapada dos Veadeiros.
A quilombola usava o veículo oferecido pela Prefeitura de Cavalcante como forma de se locomover no município goiano, quando se assustou com a fumaça que saía do transporte irregular e com gritos que avisaram “fogo”. A mulher acabou pulando da carroceria e se feriu fatalmente. O tipo de transporte foi proibido no município 15 dias após o óbito e completou um ano da proibição nesse sábado (16/11).
A tragédia já teve respostas para a Polícia Civil de Goiás, que concluiu o inquérito em fevereiro de 2024 – quatro meses após o óbito. O delegado Haroldo Padovani Toffoli apontou que a vítima seria a culpada pela própria morte.
“O resultado ocorreu por culpa exclusiva da vítima, de modo que a conclusão do presente caderno investigativo sem autoria definida é medida que se impõe”, define o delegado. Harold Padovani Toffoli conclui que a kalunga morreu porque pulou do veículo.
O laudo cadavérico apontou que Domingas perdeu tanto sangue na queda que veio a óbito por uma anemia aguda pós-hemorrágica, causada pela grave lesão que sofreu.
Á época, apesar das condições de transporte, o delegado destacou que o pau-de-arara é um meio de transporte usado há anos pelos quilombolas na região e que tinha até o contrato com a prefeitura, por meio da Secretaria de Transportes. Ele também investigou que a fumaça foi um mecanismo natural do pau-de-arara “em razão da força empregada”.
Proibição de paus-de-arara
A morte da quilombola movimentou uma decisão do Ministério Público do estado, que pediu o fim dos caminhões como transporte público para as pessoas em Cavalcante.
Um ano depois, a recomendação da proibição segue em vigor em Cavalcante. Na época, o MPGO cobrou que os veículos oferecidos pela prefeitura tenham bancos em quantidade suficiente para todos os passageiros. Os bancos devem ter encosto e cinto de segurança. No caso de carroceria, a orientação é que tenha cobertura, barra de apoio para as mãos, proteção lateral e que evite o “esmagamento e a projeção de pessoas em caso de acidente”.
Pelo documento, os meios de transporte não poderão levar passageiros em pé, cargas junto aos humanos nem que sejam veículos de carga. A promotora de Justiça Úrsula Catarina Fernandes destacou que é preocupante o modo em que são realizados os transportes da comunidade quilombola quando precisam se deslocar à zona urbana do município.
A Prefeitura de Cavalcante informou que, um ano depois da morte da quilombola, tem buscado parcerias para conseguir um transporte que garanta a locomoção de todos com segurança e conforto. O município também destacou que está trabalhando para o rebaixamento da serra em parceria com o governo do Estado.
>> Leia reportagem especial “O outro lado do paraíso” sobre a falta de acesso às comunidades rurais em Cavalcante (GO)
Um ano depois, há apenas a busca por transporte de qualidade, e pouca mudança. Já para a família de Domingas, a vida nunca mais foi a mesma desde aquele fatídico dia. “Mudou tudo”, contou a filha da kalunga, a quilombola Lucineide Carvalho.
“Eu tive que largar tudo lá e vir para cá para cuidar das coisas; tá aqui aquela correria, tem que tá lá, tem que tá cá”. Esse vai-e-vem é porque Lucineide não morava mais no quilombo quando a mãe faleceu, mas com medo de deixar os pertences da matriarca à revelia, se mudou para a comunidade a fim de passar alguns dias no local, mas desde então tem ficado direto no local.
Além dos bens materiais, a família não se conforma com o resultado do caso. “Até hoje, o processo não andou, ninguém foi culpado, só a minha mãe”, lamenta.
Morte em pau-de-arara
No momento do acidente, caminhão tinha ao menos 15 pessoas amontoadas, que subiam os morros de difícil acesso da comunidade Vão das Almas, em Cavalcante (GO). Segundo relatos, o transporte fazia uma subida íngreme e precisou forçar um pouco mais o motor, por isso a fumaça. Assustados, cinco pessoas pularam; quatro estão bem.
Após a tragédia, o socorro também teria demorado a chegar e foi feito sem um equipamento específico. De acordo com o boletim de ocorrência, registrado na Polícia Civil do município, um carro com tração 4 x 4 foi usado “devido à região ser de serra e de difícil acesso” para fazer o atendimento.
“Pegaram minha mãe e colocaram num banco após uma queda dessas”, disse a filha de Domingas, Lucineide. “Ela estava com a bacia, com fêmur quebrado, foi colocada no carro, sem maca, sem cuidado nenhum. Uma artéria rompeu e ela morreu antes de ter atendimento”, lamenta.
A reportagem teve acesso a um vídeo em que Domingas, minutos antes de morrer, está deitada no chão e implora por ajuda. Os colegas que estavam no carro seguram a mão dela e tentam confortá-la. Por respeito à família, as imagens não serão divulgadas.
“A morte dela foi puro descaso”, ressaltou o outro parente de Domingas, que preferiu não se identificar. “Tratam as pessoas como animais”, completou. Para ele, a quilombola só morreu por negligência do Estado com a comunidade Kalunga.
“Eles deixam os recursos bem longe da gente, o que é bom, que é recurso, que pode levar a gente a se desenvolver. A gente não tem acesso a um transporte legal”, indignou-se.
Outro lado do paraíso
As histórias de Domingas e de outras pessoas que vivem isoladas nas comunidades rurais de Cavalcante foram contadas na reportagem especial “O outro lado do paraíso”, publicada em agosto deste ano no Metrópoles.
A reportagem mostrou a ironia do destino que vive o quilombo Kalunga, localizado em Goiás. Durante séculos, a dificuldade de acesso à região permitia a existência dessa comunidade. Hoje, as estradas de terra são o maior empecilho de seu acesso a direitos básicos.
O Metrópoles percorreu 1.411 km para contar a rotina de crianças que trocam o dia pela noite e atravessam 200 km para chegar à escola; há relatos de gestantes que deram à luz sem auxílio médico, porque estavam distantes para serem atendidas; um homem que para ter gás em casa carrega o botijão por quilômetros apoiando o item às suas costas.
Histórias de um povo que atesta que até mesmo o paraíso é desigual. O texto venceu o prêmio CNT de Jornalismo na categoria Webjornalismo. O resultado foi anunciado em 6 de novembro.