Quando alguém compra um maço de cigarro no Brasil, depara-se com um pequeno selo retangular na embalagem, que costuma ser visto apenas como um lacre do produto. Entretanto, as pessoas não sabem que, por trás de algo aparentemente simples, existe um grande interesse da indústria.
Esse selo nos cigarros é feito com uma tinta especial, semelhante à usada para imprimir as cédulas de dinheiro, e serve para assegurar a rastreabilidade do produto de ponta a ponta, combater a falsificação e garantir o pagamento de impostos.
Além dos cigarros, cada garrafa de bebida alcoólica e açucarada produzida em território nacional era marcada com a tinta especial. O mecanismo de controle se chamava Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe). A implementação do sistema é previsto em uma lei vigente, as diretrizes dele eram estabelecidas pela Receita Federal e os contratos para seu funcionamento eram feitos e operados pela Casa da Moeda.
O sistema foi interrompido pela Receita Federal, por meio de um ato administrativo, descumprindo a lei em vigor, nos primeiros meses da gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB), em 2016, e não foi religado até hoje. Dessa forma, o Brasil encontra-se em um verdadeiro apagão de informações e descontrole sobre o exato tamanho da produção de bebidas.
Segundo dados da Receita Federal, enquanto esteve operando, o sistema de controle descobriu logo no primeiro ano de funcionamento, em 2009, que a produção brasileira de bebidas era 46% maior que a conhecida pelo fisco com base nos valores declarados pela indústria. Em cinco anos, o percentual acumulado chegou a 81%.
Segundo a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF), as perdas na arrecadação de impostos com pirataria no setor de bebidas chegaram a R$ 28 bilhões em 2022.
Na época da suspensão, a Receita Federal prometia um novo sistema, desenvolvido pela Casa da Moeda e que seria menos oneroso. O projeto nunca saiu do papel após várias idas e vindas do fisco, registradas oficialmente. Em 2022, a Receita publicou uma portaria lançando um programa de rastreabilidade fiscal, chamado Rota Brasil, mas que não foi colocado em prática.
Desde o ano passado, o caso teve uma reviravolta. Em outubro de 2023, os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), por unanimidade, julgaram ilegais os atos administrativos da Receita Federal que interromperam o funcionamento do sistema no país. A corte deu um prazo de 60 dias para que o fisco e a Casa da Moeda reimplementem um sistema de controle de bebidas de acordo com os critérios previstos em lei. Em agosto desse ano, o TCU negou o recurso da Receita Federal pedindo para não religar o sistema. A decisão recebeu o apoio da área técnica do tribunal.
Sistema
Nem todos os setores do governo e da iniciativa privada concordam com o religamento desse sistema de controle ou com suas especificidades. Além disso, outras empresas estão de olho nesse contrato, estimado em R$ 1,4 bilhão por ano.
Qualidade ou preço
Pelo menos duas empresas internacionais brigam por esse contrato, são a suíça Sicpa e a japonesa Dentsu Tracking.
Uma pesquisa do Metrópoles nas agendas do governo federal mostra que representantes das duas empresas se reuniram pelo menos 14 vezes com autoridades de ministérios, autarquias e agências reguladoras desde 2023.
Mas para além das agendas oficiais, os representantes da empresa Denstu foram recebidos pelo coordenador de fiscalização da Receita Federal, Ricardo Moreira, para discutir a rastreabilidade de bebidas. A empresa foi a única a ter tal acesso ao fisco, que negou agendas com outras empresas e entidades.
A companhia europeia detém uma tecnologia muito avançada de monitoramento e conta com um acordo de parceria com transferência de conhecimento e tecnologia de por meio da lei das estatais com a Casa da Moeda, responsável legal pela operação do controle de bebidas.
A japonesa Dentsu e outras empresas brasileiras que têm interesse no contrato alegam que o serviço da Sicpa é “caro demais” e que não precisaria de toda essa “ciência de foguete” para garantir a rastreabilidade de bebidas. A Sicpa argumenta que os outros programas de rastreamento são facilmente burláveis, e que a tecnologia de rastreabilidade da empresa é a mais confiável e adotada por mais 50 países.
A Sicpa chegou a ter o nome envolvido em uma operação da Polícia Federal (PF) que culminou com o indiciamento de um consultor da empresa, um servidor da Receita Federal e sua esposa por corrupção e fraude em licitação. Todos os réus foram inocentados das acusações pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), com a inocência confirmada em setembro do ano passado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) este ano.
O processo surgiu em 2015, quando uma operação da Polícia Federal (PF) apontou o pagamento de propina para um funcionário da Receita Federal atuar em benefício da empresa suíça. A Sicpa, inclusive, fechou um acordo de leniência, no valor de R$ 762 milhões em 2021, antes da justiça absolver os acusados. No acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU), a empresa assumiu apenas a responsabilidade objetiva, ou seja, se responsabilizou por eventuais crimes cometidos por seus funcionários. Nenhum crime foi confirmado após os julgamentos.
Relações obscuras da Dentsu
Já a empresa japonesa Dentsu Tracking é derivada da Dentsu Incorporated, uma das maiores agências de publicidade do mundo. O grupo conseguiu o contrato para gerir o sistema de rastreamento de cigarros da União Europeia, mas o caso virou polêmica no parlamento europeu. No começo de 2024, 38 deputados europeus assinaram um documento citando uma série de preocupações sobre a falta de combate ao tabaco nos países-membros.
A Dentsu é citada nesse documento em duas situações: a contratação de um funcionário público do setor de saúde da União Europeia pela empresa japonesa, logo após a companhia firmar o contrato; e uma suposta falta de transparência sobre reuniões de representantes da Dentsu com lobistas do tabaco. Além da situação na União Europeia, a empresa japonesa está no centro do escândalo de corrupção das olimpíadas de Tóquio e teve funcionários presos.
Em nota enviada para uma reportagem, a Dentsu pontuou que todas as alegações contra a empresa foram refutadas oficialmente.
Áudio comprometedor
No Brasil, a secretária adjunta da Receita Federal, Adriana Gomes Rêgo, é investigada em um procedimento interno por suspeita de interferência no órgão pela Dentsu. O esquema teria sido, supostamente, intermediado pelo marido de Adriana, Paulo Ricardo Cardoso, que é ex-funcionário da Receita. O sistema de controle foi desligado justamente durante o período em que Paulo Ricardo ocupava o cargo hoje ocupado por sua esposa.
O contrato para rastrear bebidas e cigarros é de responsabilidade da Casa da Moeda, mas as diretrizes normativas são dadas pela Receita Federal.
Um áudio obtido pelo Metrópoles revela uma conversa privada entre representantes da Dentsu após deixarem uma reunião no prédio da Receita Federal, em Brasília. No dia, os representantes da empresa haviam se reunido com o coordenador de fiscalização da Receita Federal, Ricardo de Souza Moreira.
Na gravação, o representante da Dentsu, Paulo Zottolo, diz ao CEO da Dentsu, Philippe Castella, que Paulo, marido da Adriana, repassa informações privilegiadas para o grupo.
Ao comentar que, durante a reunião na Receita, foram mencionados pontos que ele não sabia, sobre os contratos de rastreabilidade de bebidas e cigarro, Zotollo cita Paulo: “A esposa do Paulo Ricardo (Adriana) teria dito isso a ele. E o Paulo nos procurou para falar sobre o Sicobe. Então, o Paulo saberia disso”.
O almirante Liseo Zampronio, que também está no táxi com os representantes da Dentsu, entra no assunto e insinua que Paulo pode influenciar as decisões da Receita: “O Paulo, com proximidade, pode moldar ele (um dos representantes da Receita que estava na reunião)”.
Ainda na gravação, Castella comenta o cenário do tabaco no Brasil e as dificuldades da empresa de cigarros Phillip Morris em crescer no Brasil, já que a Souza Cruz é consolidada no país. “Eu já estive lá”, diz o CEO da Dentsu, em determinado momento, ao se referir à Phillip Morris. Não é segredo que o presidente da Dentsu é um ex-funcionário da multinacional produtora de tabaco.
Também não é sigilosa a posição crítica da Receita Federal em relação à marcação de produtos, sob a alegação de alto custo. Durante audiência pública em julho, o coordenador de Fiscalização da Receita, Ricardo de Souza Moreira, defendeu acabar com o controle de cigarros e bebidas no Brasil, mantendo apenas o modelo atual de autodeclaração das empresas e a emissão de nota fiscal eletrônica.
Parte da transcrição do áudio gravado foi divulgada pela Folha de S.Paulo no começo de setembro, o que suscitou até uma resposta da Receita. Em nota, o órgão partiu para cima da Sicpa, ao citar o alto valor do contrato e o antigo caso de corrupção envolvendo a empresa. Apesar da nota, a Receita Federal não cita em nenhum momento a empresa Dentsu, que teria sido beneficiada por pessoas do órgão.
“O custo do religamento é estimado em R$ 1,8 bilhão anuais, para uma arrecadação tributária de aproximadamente R$ 13 bilhões em 2023. Esse valor é superior a tudo que a Receita Federal gasta com todos os demais sistemas que controlam toda a arrecadação federal. É superior ao orçamento de diversos ministérios do Governo Federal”, escreveu a Receita no documento.
Em seu voto favorável ao religamento do Sicobe em agosto, o relator do caso, ministro do TCU Vital do Rêgo, defendeu que o incremento na arrecadação com a implantação do sistema foi muito maior que o seu custo.
“O custo de não se ter Sicobe é muito mais gravoso para os cofres públicos, em especial quando se observa, a partir de 2017, o nítido deslocamento entre as curvas de faturamento do setor de bebidas, em franca expansão, e a curva de arrecadação, estagnada”, escreveu. Durante a sessão no TCU, o ministro reforçou que oito entidades se manifestaram favoráveis ao religamento do sistema durante audiência pública da Receita Federal, como o Ministério da Saúde, a FIA/USP, a Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas) e outras associações.
A Receita Federal entrou com um último recurso contra a decisão do TCU, que deve ser analisada nos próximos dias.
Ainda aguarda análise pelo TCU os embargos de declaração do processo que determinou a volta do controle de bebidas. Os embargos foram movidos pela Receita Federal.