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Salvador, e os cultos que são vultos

Não são poucos os textos de pensadores notórios onde alguma reflexão estética, ética, ou até mesmo política vem acompanhada de citações sobre algum espetáculo, obra literária ou de arte. De Sócrates a Barthes, de Freud a Lênin, muitas são as referências artísticas e literárias, quando não são as próprias obras que inspiram algum texto ou livro. 

Fato ainda mais importante, esses pensadores estão atentos ao seu tempo. As discussões filosóficas, políticas, ideológicas, são recheadas de diálogos com criadores contemporâneos a eles, num livre trânsito de ideias, críticas, citações e provocações.

Os grandes pensadores da humanidade sabem o quanto a arte e literatura podem estar à frente do seu tempo, ou ser um reflexo acurado, provocativo do mesmo. Ou, mesmo o contrário; veem na criação contemporânea traços da fraqueza, superficialidade e apatia, quando não rendição do criador frente à tragédia do seu tempo.

A arte e a literatura alimentam a alma, o intelecto, e provocam uma leitura crítica da história, da humanidade, do seu tempo. Isso vem sendo dito por estes mesmos grandes pensadores, e eles fazem questão de provar isso nos textos que criam, nas reflexões que colocam em seus escritos.
Desta forma, a filosofia se alimenta da arte, a literatura se alimenta da estética, a ética se alimenta dos espetáculos. Esse processo transversal naturalmente gera um tecido criativo resistente para uma sociedade. E melhora sua arte, sua literatura, seu pensamento crítico, e, naturalmente, tudo isso acaba desaguando em revistas, jornais, envolvendo ainda mais a sociedade e criando uma teia de motivações, interesses e pulsação criativa.

Bem, mas em Salvador…
Bem, em Salvador, temos o curioso caso contrário. O mito do intelectual recluso desfaz-se, mundo afora, quando vemos sua relação com a criação do seu tempo, frequentando salas de espetáculo e concerto, galerias, livrarias. Por aqui, ao contrário, vê-se uma dissociação completa entre o pensamento e o acontecimento. Os pensadores (alguns admiráveis, até), passam ao largo dos teatros, das exposições, dos livros lançados recentemente por aqui.

Decorrem disso dois fenômenos curiosos.

Por um lado, gente que escreve sobre BBB, filme de roliúde, Anitta (nada contra nenhum deles), mas ignora solenemente uma arte e uma literatura que pulsam, têm evidência, reconhecimento, e demonstram fôlego para serem objeto de crítica, estudo, comparação, reflexão e diálogo.

Do outro lado, há uma turba que tem, prontamente, uma avaliação e definição sobre a criação contemporânea da cidade. A literatura recente tem tal problema; o teatro baiano sofre de tal coisa; a dança de Salvador parou em tal ponto; as artes plásticas têm tais questões… E por aí, vai. Com um detalhe: essas pessoas não fazem ideia do que vem sendo produzido na cidade. Veem, quando veem (o que é raro), alguma coisa, e já tomam como referência para dar um panorama de tudo que acontece em Salvador.

Para além dos pensadores, intelectuais e pesquisadores que poderiam evidenciar uma troca e um diálogo produtivos e necessários para nosso tecido social e cultural, há também um grande público em potencial que não sai de casa porque aqui não se monta tal autor, não se toca tal compositor, não se escreve sobre determinados temas, não há relação criativa com determinados pensamentos, estéticas, estilos, referências, clássicos, culturas, etnias.

Sendo que por aqui se monta tal autor, se toca tal compositor, se escreve sobre determinados temas, e há relação criativa com determinados pensamentos, estéticas, estilos, referências, clássicos, culturas, etnias.

Se nos faltam políticas culturais em nível municipal e estadual, e vivemos abandonados pelos poderes públicos; se nos faltam espaço na grande mídia, para sairmos de nossas bolhas; se nos falta educação e formação cultural para que haja uma iniciação e um decorrente costume de se relacionar com a arte e a literatura de forma mais arguta; nos falta também que entre nós, os que criam e os que pensam, haja um diálogo, uma relação mais profícua e sistemática.

De que adianta se citar que o artista é a antena da raça, que a arte e a literatura são  lugares necessários de reflexão, crítica e provocação para a sociedade, se não há interesse em se refletir, criticar e provocar, se não há uma troca entre fazedores e pensadores?

Num simples texto ligeiro, assim chamado por ela mesma, a professora Mirella Vieira, do Instituto de Letras da UFBA, escreveu sobre meu espetáculo Fantasia de guerra no Facebook. Nuns pouquíssimos parágrafos, descobri e repensei coisas da minha própria criação. Tive um brevíssimo momento de luz que me provocou a escrever este artigo.

Muita vai se falar sobre BBB, filme famoso, Anitta, e até carnaval. As reflexões seguirão paralelas à criação que pulsa realmente na cidade. E a criação da cidade seguirá com pulso fraco, marginal, sendo criticada pelos que não veem, e não sendo vista pelos que ignoram seu tempo e espaço; sua cultura e sua política.

Podem até ser cultos, mas viram apenas vultos.
 

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