InícioEditorialSobre a beleza deste mundo

Sobre a beleza deste mundo

Estamos no alto do Morro do Pai Inácio, Chapada Diamantina. Somos os únicos aqui, sentados de frente para uma cadeia de montanhas. O silêncio constrói sua teia ao redor de nós, rompida por esparsas rajadas de vento sobre as pedras e as plantas rasteiras. Já caminhamos por toda a extensão do topo, corremos os olhos em volta, vimos o cruzeiro e os caminhões na estrada lá embaixo, a mesma que percorremos. Com exceção da estrada, dos caminhões e do cruzeiro, poderíamos estar testemunhando uma paisagem do princípio do mundo. Em dado momento, um guia alcança o topo, seguido de três turistas. Ele nos cumprimenta e os outros seguem sem sequer virar os olhos para a paisagem que contemplamos. Passam rápido e prosseguem. Voltam cinco minutos depois, novamente sem olhar a paisagem, e descem. Eu me pergunto o que aquele passeio significou para eles. O que significou o esforço de escalar mais de 600 metros de pedra para se debruçar sobre o abismo sem se dignar a vê-lo e reverenciá-lo. Corta a cena e estamos na Gruta da Lapa Doce. Todos apagaram as luzes de suas lanternas e a escuridão é absoluta. Ninguém fala. Ouço a minha respiração e não vejo a mão que coloco a centímetros do rosto. Nunca me deparei com tamanho ermo. Novamente o silêncio engendra sua teia, desta vez amparado pela cegueira coletiva. É uma experiência meditativa que se assemelha a uma prece sem palavras, a uma sinfonia sem som. Aqui, formações geológicas levam décadas para avançar centímetros, gota a gota, que nem dedos eternamente apontados para baixo e para cima. Até que, como no afresco A Criação de Adão, de Michelangelo, os dedos se tocam e ocorre o milagre de uma nova forma. Milênios passaram, outros milênios passarão. O ermo permanecerá, enquanto nós teremos nos convertido em poeira semelhante à que pisamos. Diante de tamanha imensidão de tempo e espaço, somos pouco mais que cascalho esmagado. A natureza prescinde totalmente de nós, é isso que fica claro. Onde estamos, em outro tempo havia preguiças de até quatro metros. Elas se locomoviam no breu feito fantasmas lentos e desajeitados. Se recuarmos mais, provavelmente encontraremos habitantes ainda mais improváveis, talvez até ancestrais de nós mesmos, que morreram ali de frio e fome. Viram com suas tochas o que vemos com nossas lanternas: esculturas que se assemelham a anjos e bailarinos, leões e corujas. Porque tendemos a antropomorfizar tudo, como se o nosso olhar validasse o mundo. Agora nos transportamos para a Cachoeira do Buracão. Meus olhos estão fechados, recebendo a poderosa força da água que desce mais de 80 metros antes de castigar meus ombros, minha cabeça e meus braços, me preenchendo de plenitude. Aqui a teia do silêncio não se tece: o barulho é brutal, como deve ser num tsunami. Bárbaro e belo, doce e desabrido. Um barulho primordial, que precede o ser humano e, imagino, o sucederá. Ao meu redor, uma enormidade que não consigo apreender em sua totalidade: um caldeirão vasto e profundo de água escura que leva a um cânion sinuoso. A natureza não precisa de Deus para ser divina, ela simplesmente é. Oferece seus tesouros e encerra muitos outros. Ainda há tantos morros, grutas e cachoeiras por desvelar, mas isso é o que menos importa: eles existem sem alarde, indiferentes, acessíveis ou não aos nossos olhos e à nossa presença. Carregados de silêncio ou alvoroço, envoltos em treva ou brilho intenso. São como oferendas para ninguém. Volto na trilha cantando baixinho os versos de Caetano: “Há muitos planetas habitados. E o vazio da imensidão do céu”. O doce mistério que é a vida segue me assombrando. Outro dia, um amigo me revelou dados que leu em um livro do cientista Marcelo Gleiser: existem no universo milhares de Vias-Lácteas como a nossa, com milhões de sistemas solares como o nosso. Então me pergunto: quantas Terras haverá, semelhantes à nossa, viajando agora no nada? Quantos outros homens bobos e deslumbrados estarão neste momento, em outros mundos, discorrendo sobre uma vastidão incontornável que os fascina e aprisiona? “Me debrucei sobre a beleza deste mundo / E guardei o cheiro das estações em minhas mãos”. Esses versos estão nas páginas finais de Os Anos, da escritora francesa Annie Ernaux. Não sei se são dela. Sei que gostaria de guardar em minhas mãos o cheiro das estações, das cachoeiras, das montanhas, das cidades, do breu, do silêncio, do tempo. Tê-los comigo eternamente, como souvernirs do pouco de mundo que eu modestamente vi.

Você sabia que o Itamaraju Notícias está no Facebook, Instagram, Telegram, TikTok, Twitter e no Whatsapp? Siga-nos por lá.

Últimas notícias

Mais para você