Suzana Varjão, jornalista e escritora, é autora, entre outros do livro Micropoderes, macroviolências, que trata do racismo |
Volta à cena o caso dos dois irmãos gêmeos e o sistema de cotas raciais. Filhos de pai negro e mãe não-negra, reivindicam o benefício das ações afirmativas na disputa de vagas de concurso público, arguindo a identidade negra — não obstante terem a aparência física (tez clara, cabelos lisos) mais próxima da mãe do que do pai.
E aí é que está o cerne da questão, porque o racismo é praticado contra os indivíduos que têm pele escura e cabelos crespos — entre outras características fenotípicas. São eles que não têm “boa aparência” para determinados postos; os que ganham menos no mercado de trabalho, mesmo exercendo funções idênticas às dos não-negros.
São os que têm esse fenótipo que são mortos nas valas das cidades, por serem “suspeitos padrão”. Ninguém pede “exame de sangue” ou árvore genealógica para incluir ou excluir pessoas desse ou daquele posto de trabalho. Isso é feito a partir da aparência — e quanto menos aparentemente negra, menor é o preconceito. E vice-versa.
O racismo contra os negros foi construído sob uma falsa premissa científica: a de que existem raças humanas. E render-se uma vez mais à lógica que sustenta o pleito dos irmãos brasilienses é admitir como verdadeira essa mentira, há muito desmascarada. Não existem raças, o que existe é a perversidade do racismo, construído a partir dessa falácia.
E essa perversidade atinge as pessoas de pele escura e cabelos crespos. Uma iniquidade que ações afirmativas buscam mitigar. Então, nem científica, nem política, nem eticamente a inclusão dos rapazes de fenótipo não-negro no sistema de cotas é justificável. Eles têm direito, sim, a se autodeclararem negros, como também podem se autoidentificar como brancos.
O que não podem é disputar um benefício destinado às pessoas que sofrem com a aparência física que eles, efetivamente, não têm.
*Suzana Varjão, jornalista e escritora, é autora, entre outros do livro Micropoderes, macroviolências, que trata do racismo.