O Censo demográfico acaba de anunciar: somos um país de pouco mais de 203 milhões de habitantes. Até então, analistas usavam a referência de 208 milhões, 5 a mais. Pandemia, mudanças no mando do país, mazelas são apontadas como causa da defasagem. Mesmo assim, o país está na 7ª. posição no ranking mundial de demografia.
Não entremos nessa seara. Mais importante é analisar o Brasil sob o aspecto de grau civilizatório. Começo pinçando o escritor argentino, José Ingenieros, que diferencia os conceitos de Território, País e Nação Território é o espaço físico do país, ainda com seu involucro de terra bruta, onde contendores disputam margens, regiões e espaços. País é a configuração que abriga leis, normas, uma Constituição, poderes constitucionais que regulam os negócios e as vidas dos cidadãos.
Nação sobe ao altar mais elevado: é um deposito de esperanças e crenças, amor das pessoas ao berço em que nasceram, guardiã de valores e sentimentos, ligação profunda do habitante a seu berço.
Nação é amor à Pátria, é confluência de espíritos, é respeito às tradições, é cumprir os ritos sagrados da vida cívica, dar a mão ao próximo. Pátria é a grande Mãe que nos acolhe.
Anos atrás, vi esse sentimento brilhar numa pequena vila encravada na floresta amazônica, entre Amapá e Pará. Chamava-se Afuá e os indiozinhos, enfileirados, orgulhosos, batiam no peito, contritos, cantando o hino nacional, enquanto hasteavam, com orgulho, a bandeira brasileira. Visitei a região na companhia do senador José Sarney, todo composto em seu paletó de seis botões, apesar da umidade e do calor.
Dito isto, puxo o véu da atualidade. A terra amazônica é devastada por grileiros e mineradores. Ganha jeito de oeste americano por ocasião da conquista desvairada dos primeiros tempos. Nossas riquezas naturais são surrupiadas. Nos vãos das máquinas administrativas, disputam-se a ferro e fogo fatias de poder. A política virou refúgio de ambições desmesuradas. O caos se instala e a violência é comandada do interior dos próprios presídios.
Pinço “O Choque de Civilizações”, onde o professor Huntington descreve o paradigma do caos: “Quebra da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente, onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, declínio na confiança e na solidariedade social, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver…”
No Congresso, assistimos a uma briga leonina por cargos. Nas altas Cortes Judiciárias, o julgamento de ilícitos. Dos vapores do caldeirão político, sentimos cheiro de pólvora e embates antecipados para as guerras de 2024 (prefeitos em 5.570 municípios e vereadores) e de 2026 (presidente, senadores, deputados federais e estaduais). Nem bem termina uma eleição, começa outra.
Um véu de incerteza adensa expectativas, aumentando as angústias e diminuindo a crença nas instituições políticas e sociais. Impera a dúvida. Até onde irão os limites da reforma tributária? No horizonte, a triste possibilidade de o setor de serviços pagar o pato e arcar com o maior ônus, aliviando os tributos da indústria. Deputado Luiz Carlos Hauly, como tem sido o paladino dessa reforma, lute para domar esse furioso leão que ameaça abocanhar nacos gigantescos do setor que, ao lado do agronegócio, mais contribui para o progresso.
Bolsonaro tende a ser inelegível. Vestirá o manto do mártir. O país reconstruirá o corredor polonês, onde fileiras em paralelo se enfrentarão levantando novamente o abominável “nós contra eles”. A harmonia social cederá à insanidade.
Versões contaminarão a linguagem. O país lúdico gargalhará diante da tragédia e se comoverá com a comédia, traduzindo a ausência de racionalidade. Quem perde com isso? A Nação.
Multidões ruminam desconfianças, afastam-se das instituições e de seus representantes, afogando-se em mágoas, perdendo-se em ilusões. O Brasil correndo em direção à velhice. Os aposentados crescem assustadoramente, carregando a angústia de ver diminuídos seu provento. O governo olha para o andar de baixo da pirâmide e joga seu trunfo: financiamento para carros novos, novo minha casa, minha vida e outras coisitas. Um alívio para amenizar as agruras. Vem aí um novo PAC. Para tentar destravar um país “empacado”. O ministério de Lula continua na mesa de negociação, alvo de cobiça.
Uma CPMI procura investigar envolvidos no macabro episódio de 8 de janeiro passado. Fará condenações, mas o ar de circo e de espetáculo motiva seus participantes. O torto, o errado têm vencido o certo. Mas a dignidade é jogada na cesta de lixo. A mídia, mesmo desempenhando seu papel de pesquisar, informar, interpretar e emitir juízos de valor sobre a vida social, os vetores econômicos e o cotidiano da política, continua catando fatos impactantes. A violência nivela a cultura por baixo. Com a esperança não tão alta, o povo vê a criminalidade crescer, tornando-se coisa banal. “Morreu fulano, sicrano? Coitado”. Um estado catatônico se instaura.
E Lula cuida do seu périplo pelo mundo.
É triste. O Brasil atrasa a fixação profunda dos postes da Cidadania. Muito longe da Nação.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político