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Turismo quilombola no Recôncavo: roteiros para fazer bem perto de Salvador

Antes mesmo de Josiane Santana, de 32 anos, existir no mundo, suas ancestrais já traçavam as linhas do seu futuro. Na região rural de Mirangaba, município localizado a cerca de 370 km de Salvador, por volta de 1960, toda criança nascida passava pelas mãos de Mãe Chiquinha, sua avó.

“Toda pessoa que tem de 45 anos para cima aqui na comunidade foi Mãe Chiquinha quem colocou na terra”, garante.

Josiane só teve acesso às lembranças porque outra mulher de sua família, tia Terezinha Francisca, contava as histórias. “Ela morreu aos 63 anos, em 2010. Antes, fazia o trabalho de ‘griô’ como matriarca da família que repassava aos mais jovens as vivências dos mais velhos”, conta.

Segundo Terezinha, o que fazia nenhuma criança morrer nas mãos de Maria Chiquinha era o colar que ela usava. Toda vez que atendia uma mulher em trabalho de parto, tirava a joia do pescoço e colocava para a futura mãe usar. Era infalível: a criança nascia saudável.

Décadas depois, Coqueiro, uma das comunidades quilombolas da região de Mirangaba, nomeou uma rua de Beco da Chiquinha, em homenagem à senhora poderosa que recebeu dos orixás o dom da vida. É lá que Josiane, sua neta, mora hoje. “Sobrevivemos e estamos aqui”, celebra ela, que é coordenadora da Grota Quilombola, um grupo de resistência afrocentrada que contempla cinco comunidades da região e oferece vivências culturais para turistas.

Resistência quilombola
De acordo com o último levantamento da Fundação Palmares, realizado em 2021, existem 872 comunidades remanescentes de quilombos certificadas no Estado da Bahia. O número, porém, está longe de refletir a realidade. Conversando com lideranças locais e turismólogos, é possível perceber que a grande maioria ainda não possui a titulação de suas terras. A briga pelo território dificulta ainda mais uma existência que, por si só, já carrega tantas heranças da colonização. 

“No contexto da Bahia e também do Brasil, as comunidades quilombolas, bem como as comunidades indígenas, foram pioneiras na prática do turismo comunitário. Essas comunidades iniciaram projetos inovadores por conta própria, sem auxílio de nenhum ente público ou privado, em uma época que sequer havia uma discussão sobre turismo de base comunitária na esfera local”, explica Aline Bispo, turismóloga e membro da comissão de Gestão e Articulação da Rede BATUC, que reúne comunidades quilombolas, de povos indígenas, assentados da reforma agrária, da agricultura familiar, da pesca, de coletivos urbanos, entre outros povos dissidentes do campo e da cidade.

Promovendo atividades turísticas responsáveis e regenerativas para gerar emprego e renda, a Rede contempla centenas de famílias.

“Atualmente contamos com aproximadamente 40 organizações que fazem parte da rede,  que estão localizadas em sete das 13 zonas turísticas, e em dez dos 27 territórios de identidade. Estão envolvidas diretamente com o turismo nessas comunidades mais de 600 pessoas. A Rede conta também com a colaboração de professores, pesquisadores, técnicos ambientais, guias e condutores de turismo, que hoje se constitui em um grupo de 11 pessoas”, pontua Diana Rôde, 40 anos, turismóloga que também atua no projeto. 

“A prática tem demonstrado que o trabalho desenvolvido por essas comunidades vai além do entretenimento e do lazer. Tem sido uma oportunidade de inserir temas e desenvolver soluções para questões que ainda são um desafio no planejamento do turismo como um todo e sobretudo para o turismo convencional, como a sustentabilidade, a tolerância religiosa, o combate ao racismo, a cultura da paz, a inclusão social, a preservação do meio ambiente, a valorização do patrimônio, dos saberes e da cultura local”, analisa Alberto Viana, também membro da BATUC. 

Conheça algumas comunidades que abrem suas portas para visitantes, de maneira diferenciada. Há lugares que oferecem uma experiência de um dia, há outros em que se pode passar um tempo, inclusive dormindo em locais no próprio quilombo. Indiferente à sua preferência, é certo ser recebido com muita alegria, cordialidade e força de nossa ancestralidade. Confira algumas sugestões e agende-se:

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Grota Quilombola

Josiane Santana, 32 anos, é  a coordenadora da Grota Quilombola, um grupo de turismo de base comunitária criado por jovens quilombolas. Ela trabalha em Coqueiro, quilombo que fica em Mirangaba, a cerca de 10 km de Salvador. O grupo não possui transporte próprio, por isso, quem quiser vivenciar a experiência precisa ir com o próprio transporte. No entanto, nenhum valor extra, para além da alimentação, é cobrado.

“Basta agendar com a gente pelo Instagram que nos organizamos e definimos uma data. Um guia leva o grupo até os nossos locais sagrados, eles conhecem seis quilombos, ouvem samba de roda, comem com a gente. Só cobramos pela alimentação, cerca de R$ 30. Se a pessoa quiser dormir, pode ficar na casa de alguma das famílias, que nem sempre cobram. Quando cobram, é cerca de R$ 50”, explica Josy, como é conhecida. 

Criada em 2016, a Grota percorre um roteiro de seis comunidades em Mirangaba: Coqueiro, Palmeira, Soledade, Lajedo, Santa Cruz e Jatobá. Todos os quilombos são certificados e somam mais de três mil pessoas. “Fundamos a Grota para trabalhar o reconhecimento identitário e o enfrentamento do preconceito racial, e também para reduzir o êxodo. Muitos jovens acabam indo embora ou trabalhando em condições precárias no campo. Muitos param de estudar a partir do quinto ano, porque não tem mais escolas próximas. A juventude é quem mais sofre, por isso nos articulamos”, conta.

O destaque é a beleza natural. A rota das cachoeiras da Zoada e de Nuguaçu faz sucesso. Tem também a Gruta do Santo Antônio e a Igreja das Figuras, que é patrimônio histórico local. Tem trilhas, um bom samba de roda e pode-se provar uma deliciosa galinha de quintal com arroz do brejo, saladas e sucos. Tudo o que é consumido foi plantado em algum dos quilombos da região. 

Valores:  Tour (gratuito); hospedagem (quando cobrada, custa R$ 50). A alimentação é R$ 30, café, almoço e janta. Caso o grupo durma por lá, o valor é reduzido para R$ 20. Contato: @grota_quilombola.

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Casa do Boneco

Localizada em Itacaré, que fica a cerca de 250 km de Salvador, a Casa do Boneco é um centro cultural de afrodesenvolvimento fundado em 1988 e que atua em paralelo à Fazenda Modelo Quilombo D’oiti, um quilombo urbano instituído pela fundação Palmares e remanescente do terceiro maior quilombo da história do Brasil, que hoje abriga cerca de 36 famílias. Seu criador, Mestre Jorge Rasta, 56, nasceu em Salvador mas mora no município desde os 21 anos. Ex-militar, Rasta já foi terceiro-sargento do Exército e atua na articulação política desde os 15, quando trabalhava como líder comunitário de Massaranduba, em Alagados. 

“Trabalhamos com a manutenção da ancestralidade, através da dança, música, história africana, história do candomblé, arte circense. Temos um legado voltado para a comunidade, sempre afirmando os princípios da cosmovisão africana. Falamos sobre saúde da população negra, educação afrocentrada, e mais uma série de cursos profissionalizantes. Criamos um destino de turismo étnico dentro do quilombo”, resume Mestre Rasta, “um homem com 1,80 de altura, filho de Xangô e de Oxum, com um rastafari que arrasta no chão”, define-se. 

O espaço oferece cerca de 16 oficinas aos visitantes, às vezes mais. Assim como apresentações musicais e artísticas. Dentro das vivências compartilhadas, prevalece a política de enfrentamento das questões afrodiaspóricas, não só na Bahia, mas à nível nacional. Os turistas são recebidos com uma imersão cultural profunda, e passam por rodas de conversas sobre diversos temas que envolvem a realidade quilombola. Após a recepção,  é hora de partir para as trilhas, que passam por manguezais e pela Mata Atlântica, local onde a comunidade cultiva ervas sagradas. Depois, tem também o culto aos orixás.

A culinária percorre os princípios afroindígenas, e traz opções veganas e vegetarianas, também. Quase tudo é produzido na fazenda.

 “Esse diálogo nosso é construído por um movimento de luta. Nossa preocupação é com a manutenção e fortalecimento da nossa ancestralidade”, diz Mestre Rasta. 

Valores:  Pacote de três dias (R$ 750 em média por pessoa, com alimentação); Day use (R$ 450 por pessoa, sem alimentação). Outros pacotes podem ser negociados diretamente com a Casa.  Contato: @casadoboneco.itacare

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Quilombo do Tereré

Capoeira, samba de roda, maculelê, azeite de dendê de pilão. No quilombo do Tereré, em Maragogipinho, no município de Vera Cruz, a cerca de 10 km de Salvador, a vivência cultural é o grande destaque. Diretor-residente e condutor do quilombo, Anatelson Conceição tem 45 anos, 36 deles vividos na comunidade. 

“O quilombo começou com a guerra de Euclides da Cunha, não sabemos ao certo a data exata. Minha avó, Graça Maria, nasceu em 1869 e veio pra cá aos 7 anos. Na época, ela já frequentava o quilombo. Sempre tivemos água potável e livre do Tereré, então, durante muito tempo essa água servia para comercialização. A gente vendia para o pessoal lavar roupa, fazer comida. A energia e a água canalizada chegaram em 1985. Aproximadamente 2.150 pessoas vivem por lá atualmente”, relata Anatelson.

Dentro da comunidade, é possível visitar a fonte do Tereré e um museu quilombola que relembra registros históricos da Bahia. O artesanato da comunidade também está exposto, assim como as festas do terreiro e os acessos à horta comunitária. Também é possível observar Salvador de longe, do alto de um mirante que ainda contempla a Ilha de Itaparica. 

Na comida, destaque para os peixes e para a feijoada, o carro-chefe. Frango grelhado, mariscada e ensopado também fazem sucesso. Nas bebidas, nada alcoólico: apenas sucos e chás. “Temos também a casa da farinha, nossa agricultura, as rochas imensas, pomares e hortaliças”, completa. 

 Várias casas se oferecem para receber os visitantes. Caso eles queiram ficar no quilombo, um salão é reservado com colchonetes. O roteiro dura entre 4 e 6 horas e passa por todos os espaços do Tereré.

Geralmente as pessoas ficam em uma pousada próxima ou se for uma pessoa que quiser ficar no quilombo. a gente tem o salao, um colchão, colchonete. A gente tem uma tabela: um ou dois com almoço – 180 reais; até quatro visitantes 144 reais; até 6 visitantes 132 reais; a partir de 7 em diante 120 reais. no roteiro com vivencia de 4 a 6 horas, terreiro, cultura do azeite, capoeira, samba de ronda.

Valores: Uma ou duas pessoas, com almoço (R$ 180 por pessoa); até quatro visitantes (R$ 144 por pessoa); até seis visitantes (R$ 132 por pessoa); de sete em diante custa R$ 120, cada visitante.    Contato: @quilombodoterere

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Rota da liberdade

Kaonge, Dendê, Kalemba, Engenho da Ponte e Santiago do Iguape são os cinco quilombos que integram a Rota da Liberdade, um núcleo de turismo étnico de base comunitária que surgiu com o propósito de valorizar e fortalecer a cultura quilombola. Localizada em Cachoeira, a cerca de 121 km de Salvador, na zona rural de Santiago do Iguape, a Rota tem forte conexão com espaços acadêmicos e realiza muitas excursões universitárias.

“A Rota surgiu em 2005, através do projeto Cultura Viva. Os jovens receberam uma bolsa de pesquisa e a partir daí descobrimos a possibilidade do turismo étnico. Logo que começou a se entender esse tipo de turismo, fomos um dos primeiros do Brasil. Hoje somos 20 pessoas envolvidas na coordenação”, explica Andreza Viana, 27,  do time de comunicação e vendas. 

Andreza nasceu em Salvador, mas se mudou para o quilombo Kaonge aos 7 anos, para morar com a avó. Por lá, foi criada por ela até os 18. “Minha família é toda de lá. Por se tratar de uma comunidade tradicional, não tinha água, não tinha energia, foi chegando de 2005 para a frente. Eu lembro de muito conhecimento e experimentos, sou quem sou por causa do meu aprendizado de lá. Atuo na Rota da Liberdade em todos os projetos, todo fim de semana estou lá, sempre envolvida. Meu porto seguro é lá”, revela a jovem, que acabou retornando a Salvador para estudar. Ela se formou em jornalismo e atua na linha de frente da comunicação da Rota. 

Cada comunidade tem uma liderança, sendo um geral e um suplente: um mais velho, outro mais novo. As cinco comunidades somam cerca de 500 pessoas e integram o Conselho Quilombola Bacia e Vale do Iguape, que contempla 16 quilombos. 

Na Rota da Liberdade, as ostras são o grande chamariz. Para além delas, é possível ouvir samba, conversar pessoalmente com a ‘griô’ (a guardiã das histórias da comunidade) e entender sobre as vestimentas. Quem visita, participa de tudo. “Não tem aquilo de ir para a comunidade e ficar alheio. Se tiver atividade religiosa, você vai. Se tiver um evento de família, você vai. Não queremos que venham para assistir novela, tudo tem lugar. Aqui é um espaço de resistência cultural”, argumenta Andreza. Para quem quiser dormir por lá, tem pousada, pensão e restaurante.

Valores: R$ 80 a diária por pessoa, R$ 130 o casal.  Contato: @turismo_rotadaliberdade.

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Quilombo do Massarandupió 

Fruto de histórias de conflitos e ocupações colonizadoras, o Quilombo do Massarandupió integra o município de Entre Rios, localizado a cerca de 123 km de Salvador.  Tudo começou na dinastia imperial de Garcia D’Ávila, primeiro agropecuário do Brasil, que escravizava negros e índios. Ambos os grupos foram posteriormente abandonados quando a era chegou ao fim. O desabrigo virou amparo, e ao lado da aldeia dos indígenas Massará (onde hoje é Massarandupió), nasceu um espaço de resistência e troca de saberes. Ao total, são 88 famílias.  

 “Em 2016, um grupo de afroamericanos que estavam em Sauípe vieram aqui. Conheceram nossos produtos artesanais, sambaram, viram nossas tradições, a nossa capoeira. Depois de um tempo, voltaram. Entendemos que compartilhar nossas heranças culturais e culinárias podia nos fortalecer”, explica Damião Muniz da Silva, 47, colaborador do Movimento Quilombola da Bahia e vice-presidente da comunidade.  

 Ao chegar no quilombo, a recepção começa logo após adentrar o portão. Com roupas tradicionais, torso na cabeça e ornamentações, os moradores recebem os visitantes e os levam para o quiosque, onde acontecem os cultos, o  samba e o caruru. Em seguida, é hora do samba de roda e de ouvir as histórias do quilombo e das redondezas. Tem oficina de farinha, banho no vinho, visita ao terreiro e até uma biblioteca chamada Nelson Mandela, que funciona também como um museu-senzala. Entre as atividades, sobra comida: almoço, lanche, doces, alimentos orgânicos. As vivências começam às 9h e vão até às 16h. Não existe serviço de hospedagem, mas muitas famílias abrem as portas para abrigar os turistas. 

“Essa comunidade se insere como um mecanismo de resgate dos direitos à moradia e sobrevivência, do direito à sua área demarcada. O turismo é mais uma ferramenta, assim como a agricultura familiar, a produção de farinha e a feira quilombola que realizamos no terceiro domingo de cada mês. As propriedades do nosso entorno nos cedem insumos, que retiramos de algumas propriedades com autorização, como cipós e óleos de piaçava. O empreendedorismo rural existe e é potente. Isso nos emociona”, finaliza Damião.  

Valores: R$ 150 por pessoa; pacotes especiais para estudantes. 
Contato: 75 98306-5391.

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