InícioEditorialVamos falar sobre drogas? Dependência do celular já é proporcional ao alcoolismo

Vamos falar sobre drogas? Dependência do celular já é proporcional ao alcoolismo

Foto: Valter Campanato/ABr

Segundo o Instituto Delete (Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias), do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, 7 em cada 10 pessoas pesquisadas mostram uso excessivo de telas de celular, principalmente diante de feed de redes sociais, rolando ao infinito. Dentre essas sete, três já indicam dependência patológica de consumo, ou seja, sofreriam manifestações somáticas caso fossem privadas de seu objeto precioso. É um número proporcional ao alcoolismo, segundo o pesquisador Eduardo Guedes em reportagem ao jornal O Globo (30/05/23). Então vamos falar sobre drogas? Sim, anote a repetição de descarga de dopamina com pitadas de endorfina como uma delas. Este é o efeito dos mais inocentes dos aparelhos a nosso redor, ou aquilo que Drauzio Varella batizou como “invenção do diabo” em entrevista para o UOL em 09/05/23. 

Nessa mesma roda de conversa, o famoso médico insistiu que nós não fomos feitos para sofrer interrupção de atenção por minuto com notificações e com acúmulo de informações dispersas e memórias fugazes. E acrescentou: “Toda essa tecnologia só nos fez trabalhar mais, e as próximas tecnologias acumularão ainda mais tarefas para nós”. Por falar em trabalho, em 2019, a International Stress Management Association (Isma-BR) estimou que 32% dos trabalhadores ativos pelo mundo sofrem de sintomas de esgotamento e possibilidades de desenvolver Síndrome de Burnout, fenômeno já reconhecido pela OMS, estreando no topo dos motivos de afastamentos ocupacionais. Durante o recolhimento da quarentena na pandemia, os números estouraram. 

Mas não estávamos falando de drogas? Drauzio Varella fala para a jornalista: “Pessoas tão respeitadas quanto você e eu só dorme a base de remédio”. Enquanto eu escutava a entrevista, tinha certeza que pelo menos um ou dois dos integrantes da bancada correspondia à provocação. Porque sim, nesse modelo de aceleração de demandas e de resultados e de acúmulo de tarefas e funções, o que resta são medidas artificiais de controle de descanso e de moderação de humor. Claro, ainda bem que as temos, são tecnologias químicas e são a forma que muitos encontram e devem mesmo encontrar, sem preconceitos de uso, para restabelecer laços com a vida social.  Mas, em seu consumo indiscriminado, parece que no meio de tantos compromissos e responsabilidades, não poderíamos depender de um encaixe de melatonina marcada às 23h em ponto e depender de uma função pessoal para o sumiço de um medo ou de uma inquietação impertinente durante uma demanda de alta produtividade. Talvez sem ansiolíticos, soníferos e estabilizantes como os inibidores de recaptação de serotonina e noradrenalina teríamos um apagão produtivo global nesse momento?

A premissa do filme O Lobo de Wall Street, de Martin Scorcese, que completa agora uma década de lançado, é implicar o consumo de drogas com o modelo econômico de hiperconsumo e de exploração das forças naturais do homem, no sentido em que o ser humano também é um dos recursos de esgotamento na Terra.  Baseada na biografia do investidor Jordan Belfort, a narrativa se desenvolve nos bastidores do mercado financeiro de Manhattan. Em uma cena cômica, o recém-contratado Jordan, interpretado por Leonardo DiCaprio, é aconselhado por seu mentor Mark Hanna (Matthew McConaughey) a realmente encarnar o papel de um alto executivo: compulsões e entorpecentes. De qual outro modo o jovem investidor teria o brio de mover diariamente milhões em aplicações financeiras e vender papéis para acionistas que movimentam o mundo todo? A conquista e o poder são as maiores recompensas, maiores do que uma existência humana, inclusive a própria. Então metas extra-humanas – milhões de dólares, companhias, arranha-céus – exigiriam organismos extra-humanos. O segredo, nessa visão de mundo, é se tornar como o anti-herói do videoclipe e da canção Shades of Cool, de Lana Del Rey: Cold heart and hands and aptitude/He lives for love, he loves his drugs, he loves his baby too (Coração frio e mãos e aptidão/Ele vive para o amor, ele ama suas drogas, ele ama sua “querida” também)? 

No filme Jordan acaba por misturar todos os excessos: de dinheiro, de poderes, de “coragem” para ultrapassar os limites da lei e de drogas. A vida se transforma em uma grande viagem lisérgica, em que nothing is real. Mas é preciso que a vida seja de verdade, eis uma das suas maiores exigências… E por falar em realidade, e por tanto falar em drogas, é preciso que encaremos de frente o tema, que se converse, de uma forma ou de outra, nas casas, nas salas de estar e, por que não?, de aula. Porque estamos presos em “verdades” rígidas demais, e elas precisam se tornar orgânicas e sóbrias, com a seguinte: por que pode brotar em nós o desejo ou a necessidade de nos entorpecermos? Seria consciente ou inconscientemente uma constatação generalizada dos versos do Pink Floyd? “The child is grown/The dream is gone/And I have become comfortably numb” (A criança cresceu/O sonho se foi/E eu me tornei confortavelmente anestesiado)?

O STF tenta julgar desde 2015, em votação adiada mais uma vez nessa última semana de maio de 2023, a legalização do porte de drogas, em que pretende tratar o usuário não como criminoso, e sim como uma vítima da situação, e, em alguns casos de abuso, passar a ser tratado pelos órgãos de saúde, não penais. No Brasil, já se computa 1/3 das prisões com relação a drogas, nos presídios femininos são razões de 2/3 dos encarceramentos do terceiro país com maior população carcerária do mundo. Famílias inteiras implodem com a falta de suporte e estrutura pública para auxílio a viciados. Estes são os fatos, sem onda. É um sistema inteiro lidando com uma questão que precisamos fazer existencialmente: por que e para que a droga? Pode ser uma aliada, uma brecha nas portas da percepção, uma conexão com algo maior; pode ser um escape fácil, uma cadeia social de somas de vazios, uma fuga da dor e da ansiedade? Estamos na grande roda, passando entre nós a oportunidade da discussão.

*Saulo Dourado é escritor de livros de ficção e professor de filosofia em colégios de Salvador
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores

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