A cada semana, ao menos seis mulheres foram vítimas de violência na Bahia no ano passado. O número representa um incremento de 58% em relação a 2021. Naquele ano foram 200 registros, enquanto que em 2022, 316 casos foram contabilizados. Entre as violações estão homicídios, feminicídios – quando a mulher é morta por ser mulher – e agressões física. Os dados alarmantes são reflexo da falta de políticas públicas eficientes e da desigualdade de gênero que permeia a sociedade brasileira, segundo apontam especialistas.
Para contabilizar as informações sobre violência contra a mulher, a Rede de Observatórios da Segurança monitorou diariamente notícias sobre o tema públicas em meios de comunicação e redes sociais. O boletim ‘Elas vivem: dados que não se calam’, divulgado nesta segunda-feira (6), analisou sete estados brasileiros e aponta que a Bahia é o estado do Nordeste que mais registra violações de gênero em número absolutos. Em seguida estão Pernambuco (225) e Maranhão (165).
Sabe-se, no entanto, que nem todos os casos de violência vêm à público na mídia, até porque muitos deles nem sequer chegam à polícia. Por isso, especialistas acreditam que os números sejam ainda maiores. O levantamento indica que, em um ano, mulheres foram vítimas de 93 homicídios, 91 feminicídios e 74 tentativas de feminicídio e/ou agressão física no estado.
No mesmo período, a Polícia Civil contabilizou 108 feminicídios na Bahia, número maior do que o registrado pelo boletim. No ranking nacional, o estado aparece em terceiro lugar, atrás apenas de São Paulo (898) e Rio de Janeiro (545). Larissa Neves, pesquisadora da Rede de Observatórios na Bahia, analisa que o aumento de mais de 50% no número de registros é resultado da falta de ações do poder público para combater a violência.
“O aumento está atrelado a falta de medidas de prevenção de maneira efetiva. É de extrema urgência que se aumente a proteção judicial das mulheres que já procuraram a polícia”, pontua. Medidas protetivas, utilização de equipes multidisciplinares e decreto de prisão preventiva são ações que a Justiça pode tomar diante de casos de violência doméstica.
Giovana (nome fictício), 36, solicitou uma medida protetiva contra o ex-marido em novembro de 2021. A decisão foi tomada depois que a mulher foi vítima de agressão física na frente dos dois filhos pequenos. “Quando se tem filhos envolvidos, tudo fica mais difícil. Eu protelei essa decisão durante muito tempo”, relembra.
Mas a medida protetiva não foi suficiente para que o ex-companheiro continuasse com as violações, mesmo que à distância. Meses após o episódio de agressão física, o homem continuou a perturbá-la, com mensagens de texto. Ele chegou a alterar as senhas das redes sociais dela.
Para Larissa Neves, tornar público os dados de violência é uma forma de chamar a atenção do Estado para o problema social e cobrar medidas mais firmes que protejam Giovana e muitas outras mulheres.
Leia mais: Medidas protetivas concedidas na Bahia aumentam 100% em cinco anos
“Não são apenas números, são vidas de mães, irmãs e filhas. O Estado brasileiro e o governo da Bahia precisam entender que não tem mais como tolerar. Ano após ano nós vemos um aumento dos registros de violência”, afirma a pesquisadora. A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) foi procurada, mas não comentou o aumento da violência.
Escalada
É comum que antes que a mulher seja vítima de agressões físicas, outros tipos de violência, mais sutis, apareçam nos relacionamentos. A evolução das violações acontece em formato de espiral. A cada vez que um novo episódio acontece, a violência fica mais grave e visível. Foi assim com Giovana, que ouviu muitos xingamentos antes que o homem a agredisse fisicamente.
O Estado brasileiro reconhece, através da Lei Maria da Penha, cinco formas de violência contra a mulher: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. Milena Pinheiro, advogada que atua na área de Violência Doméstica e Crimes Sexuais, lembra que a violência psicológica foi tipificada no código penal brasileiro em 2018.
“A violência psicológica tem como conduta criminosa aquela que causa dano emocional à mulher, prejudicando seu pleno desenvolvimento. Há ainda a conduta de querer controlar os comportamentos da vítima utilizando chantagem ou ridicularização”, explica a advogada. Qualquer pessoa denunciar casos de violência contra a mulher através do 180.
Problema estrutural
Se a polícia e a Justiça são acionadas na ponta superior da espiral da violência, medidas precisam ser tomadas para que os direitos das mulheres não sejam violados desde o início. Por isso, especialistas defendem que o combate à violência de gênero deve ser tratado desde a infância, dentro de casa e nas escolas.
“A violência não pode ser vista só como um problema de polícia. É preciso ter um olhar sobre a sociedade e entender os pilares que ela foi construída: a desigualdade social, de gênero e o racismo, por exemplo”, analisa Julieta Palmeira, que foi durante sete anos secretária de Estado de Políticas para Mulheres.
O fato do machismo estrutural ser um dos formadores da sociedade brasileira como conhecemos hoje, faz com que homens sejam ensinados, desde cedo, que possuem controle sobre o corpo das mulheres. Prova disso são as motivações para os feminicídios presentes no boletim ‘Elas vivem’.
Na Bahia, as razões que mais aparecem para “justificar” os crimes são: brigas (19), término de relacionamento (16) e ciúmes (6). O levantamento não foi capaz de decifrar as motivações de 40 assassinatos de mulheres em 2022.
Em 97% dos feminicídios registrados na Bahia, o agressor é conhecido da vítima
Uma das nuances mais dramáticas dos feminicídios é que homens próximos das vítimas costumam ser os assassinos. É raro que o agressor seja desconhecido das mulheres, como aponta a pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança. Em 70% dos 91 crimes, companheiros ou ex-companheiros das vítimas são os responsáveis pelas mortes – o que representa 77% dos feminicídios registrados no estado.
Os outros autores estão divididos em conhecidos/vizinhos (7), familiares (5), desconhecido (2) e agentes de Estado (1). Em seis casos não foi possível aferir a autoria dos crimes. A proximidade de vítima e agressor não é exclusiva da Bahia. Em São Paulo, estado com mais feminicídios registrados, 94% foram cometidos por companheiros ou ex-companheiros. No Rio de Janeiro, a taxa é de 69%.
Não é incomum que os crimes aconteçam na frente de filhos menores de idade. Aline dos Santos Souza, 39, foi morta a facadas no dia 18 de fevereiro, em Gandu, no sul da Bahia. O principal suspeito do crime é o companheiro da vítima, que está foragido. A filha dos dois, de apenas 9 anos, estava na casa quando a mãe foi morta.
“A maioria dos casos acontecem nos lugares em que a vítima deveria se sentir segura e os culpados são pessoas em que a mulher confiava. Em muitos casos, esses homens também violentam parentes e filhos das vítimas e tentam tirar sua própria vida”, analisa a pesquisadora Larissa Neves.
*Com orientação da subeditora Fernanda Varela.