A gente tava quase dormindo quando começaram os estouros. Depois de alguns minutos, meu filho perguntou “tem certeza de que são fogos, mãe?”. Eu respondi “é, tem muito terreiro homenageando Xangô”. Mas a cadência tava estranha, achei. “Isso é foguete ou tiro?”, perguntei, por WhatsApp, ao amigo que sabe de tudo que acontece na cidade. “É tiro e bomba!” ele respondeu, pra depois mandar áudios explicando o tudo de sempre que não surpreende mais ninguém. É polícia, é traficante, é briga, morreu um, mataram outro, disputa de “boca”, nem tão cedo acaba. Pois é, a moda chegou por aqui também. Não, não estávamos em São Paulo, no Rio, em Salvador ou em qualquer outra metrópole brasileira onde, infelizmente, tiroteios são comuns. Sequer em Feira de Santana. A cidade é Muritiba, acredite. Menos de 30 mil habitantes. Pequenininha. Silenciosa. Quase nada acontece. Mas as rajadas de metralhadoras e os estouros de granadas não são mais assim tão raros. Na quinta-feira (20) leio uma notícia: a Bahia tem seis cidades, entre as 10 mais violentas do país. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, num ranking que trata, exclusivamente, de número de assassinatos. Venha comigo interpretar: entre as 10 cidades onde mais se mata gente, em todo o Brasil, estão seis baianas. Só sobraram quatro colocações pra dividir pelo resto do país. Ocupamos, inclusive, o primeiro, segundo, terceiro e quarto lugares. Medalha de ouro, prata, bronze e “honra ao mérito” distribuídas na seguinte ordem: Jequié, Santo Antônio de Jesus, Simões Filho e Camaçari. Depois é que começamos a intercalar com cidades de outros estados. Do Brasil que, no quesito “segurança”, sempre teve fama ruim. (Fiquei intrigadíssima com Jequié. Jequié, gente? Eu, hein.) Quer dizer, a Bahia tá no “cu da cobra”, amigo leitor. Não em outro lugar. Nem venha dizer que estou sendo vulgar sem me oferecer expressão mais apropriada e de mesmo sentido. Não há. É o óbvio, nos números e nas ruas da capital e do interior. Do Corredor da Vitória a Sussuarana (onde minha amiga não consegue mais dormir nem abrir janela por causa de tiro) passando pelo Recôncavo e pela Ilha de Itaparica onde não foi moleza o Verão. Nunca precisei andar tão atenta em minha terra. Todo mundo sente, todo mundo sabe e não há propaganda, stories, São João, show, Carnaval, militância nem desmentido, não há nada capaz de nos distrair da sensação de insegurança que sempre se justifica. Aí, uma pergunta precisa ser feita: depois de 16 anos, qual é a desculpa do Governo da Bahia? Sim, porque foram oito anos de Wagner, oito anos de Rui e, agora, Jerônimo herdou. Todo mundo do PT. Se a herança é maldita ou bendita, tá tudo em família. Hegemonia é céu de brigadeiro pra quem tá na cadeira. Não tem contradição, desfazer o que o anterior fez nem mudança de rota. Na prática, é o mesmo governo, com as mesmas diretrizes, há mais de 16 anos. O que acontece, hoje, no estado da Bahia, portanto – de bom ou mau – é resultado desse trabalho. Sobre isso, não vejo o que discutir. Então, qual é o problema com a nossa segurança pública? Por que chegamos a esse lugar tão ruim? Tem cabeça de burro enterrada aqui? Esqueceram de despachar Exu? É algum encosto? Desaforo ao Senhor do Bonfim? Falta de oração? Espírito obsessor? Há uma explicação mágica, uma espiritualidade a ser trabalhada? Ou que diabo é isso, pelo amor de Jeová? “O tráfico do Sudeste subiu”, “as mortes são de ‘gente ruim'”, “os números estão errados”, de tudo se diz entre fatos, devaneios e desonestidades. Esquecem, todos, que qualquer um sabe o básico: segurança pública sempre será desafio, em qualquer lugar. É trabalho contínuo, uma equação complexa. Não é apenas cuidar da polícia e prender bandido, ainda que isso faça parte do pacote. A gente sabe que segurança pública é, também, resultado de equidade social, educação, transporte, saúde. São estudos e práticas interdisciplinares, é inteligência, competência técnica, honestidade e coragem na pauta, ainda que métodos possam ser discutidos e é saudável que se discuta. Indiscutível é a temperatura das ruas, que qualquer pessoa pode medir. Por mais ignorante, o transeunte consegue avaliar o nível de segurança pública, apenas se sentindo seguro ou não, em determinada situação ou lugar. Agora, com toda a sinceridade de sua alma, mesmo sem considerar os números, me diga: você se sente seguro na Bahia? Pois é. Ainda mais depois dessa próxima novidade. Porque, ainda por cima, a Bahia – o estado como um todo – é líder nacional em mortes violentas intencionais (feminicídios, assaltos, execuções de bandidos e policiais). Você entende que é mais assassinato do que no Rio de Janeiro e em São Paulo? Registradas, foram 6.659 mortes desse tipo, em 2022, nos dados colhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgados também no Anuário. Há quem defenda que é pra tirar os bandidos da contagem, que se morreu em confronto com a polícia é porque não prestava e não devia valer como assassinato. Oxe. Então, foram todos julgados, condenados e legalizaram pena de morte na Bahia? Ou em 100% dos casos foi legítima defesa do policial? Boa tentativa, senhores, mas lembro que a frase “bandido bom é bandido morto” escutei muito foi em outro lugar. Seja como for a contagem de mortos, nota e conversa não tiram o medo do vivente andar em Muritiba, em Santo Antônio de Jesus ou em Salvador. O celular de minha amiga já virou telefone fixo porque ela não tem coragem de levar pra lugar nenhum. Meu amigo me disse que apaga o carro todo pra entrar na garagem do prédio no Costa Azul onde, há uns meses, assassinaram um idoso que estava sentado num bar. Outro dia, eu saí de uma farmácia e soube que, minutos depois, ela foi assaltada. No verão, eu tomei umas cervejas no largo de Dinha e, na mesma noite, mataram um cara lá. No Porto da Barra nem piso mais. Não tenho a menor tranquilidade para ensinar meu filho a se locomover de ônibus no estado que amamos. Barril. Real. Seja qual for o seu partido, a sua posição política, o seu envolvimento com o governo, você sabe que, se nada for feito, o “cu da cobra” pode nem ser a última parada. Ainda há pra onde descer, sempre há. E vamos todos de mãos dadas, a menos que você tenha carro blindado e segurança particular. Às vezes, nem desse jeito a pessoa se salva. Não é questão de opinião, são os fatos. Será que a Bahia tem mais problemas “insolúveis” do que todos os outros estados? Por que aqui seria mais difícil de resolver? O Governo Federal acaba de lançar o Programa de Ação na Segurança (PAS), a Bahia tá gritando por prioridade? Temos prazos para resultados? Temos estratégias? O que é que falta? Eu não sei, mas tô querendo saber. Acho que muita gente tá assim. Seria bom se alguém começasse a explicar. Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo