Marion Terra, 65 anos, não teve o direito de abraçar o filho e fechar o luto. Em 2001, Lucas Vargas Terra, que à época tinha 14 anos, foi estuprado, assassinado e depois teve o corpo carbonizado em Salvador. Nesta terça-feira (25), dois pastores acusados de participação no crime vão a júri popular.
Desde que ocorreu a tragédia, há 22 anos, a mãe do adolescente carrega na voz a saudade do filho, que teve a vida retirada precocemente e de forma brutal, e também a luta por justiça. Agora, está nas mãos dos jurados pôr um fim ou não à aflição de Marion e família, que perdura há mais de duas décadas.
“Eu vivo para fechar o ciclo da impunidade. Quero o júri popular porque são as pessoas da sociedade que vão julgar, a decisão não depende do Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Federal, depende de um corpo de jurados que são pais e mães que querem proteger seus filhos. E eu tenho certeza que ali (júri popular) estarei encerrando uma caminhada e é por isso que não vou desistir. Quanto mais eles me batem, mais eles nos tornam fortes. Não tenho medo deles”, desabafou Marion, agarrada à foto de Lucas Terra.
Os pastores Fernando Aparecido da Silva e Joel Macedo sentarão no banco dos réus às 8h desta terça-feira, no Fórum Ruy Barbosa, em Nazaré. Eles respondem pelo crime em liberdade e, segundo Marion, continuam congregando.
“Eu não vou permitir que eles fiquem impunes. Lucas não está mais aqui e eles continuam atuando nas igrejas, só que agora em São Paulo”, disse ela.
Já o pastor Silvio Galiza, condenado em 2012 a 18 anos de prisão, teve progressão de regime, cumpriu a pena e hoje está livre. Foi através do depoimento de Galiza que Fernando e Joel foram denunciados pelo Ministério Público.
O crime contra o adolescente Lucas Terra aconteceu em março de 2001, dentro de um templo da Igreja Universal do Reino de Deus, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. À época, o pai da vítima, José Carlos Terra, apontou como motivo para o crime o fato do seu filho ter flagrado Joel e Fernando fazendo sexo, com base no testemunho de Galiza, dado depois da condenação.
“Lucas se destacou tanto na igreja que o colocaram imediatamente como auxiliar de obreiro. O que era a formação de obreiro na igreja que ele frequentava? Uma gravata. E essa gravata custou a vida dele. Ele foi buscar o que tinham lhe prometido e nunca mais voltou. Carbonizaram ele ainda vivo. Meu filho não teve direito à defesa”, revolta-se Marion.
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Marion luta há 22 anos para que pastores sejam punidos pela morte do filho (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
A mãe de Lucas Terra disse que já denunciou o caso na Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde mais de 20 países fazem parte, entre eles Estados Unidos, Canadá e o Brasil – a Corte é um órgão judicial autônomo que representa todos os membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) e cujo propósito é aplicar e interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros tratados de Direitos Humanos.
“Eu quero que outras mães não passem o que estou vivendo. Queremos um projeto de lei para que uma mãe nunca mais espere por tanto tempo assim para que os assassinos dos seus filhos sejam julgados”, declarou.
Além da injustiça, a dor de Marion é agravada por outro momento. Seu marido, José Carlos Terra, morreu em fevereiro de 2019. Ele estava internado no Hospital Ernesto Simões e teve uma parada cardiorrespiratória decorrente de uma cirrose hepática, diagnosticada um ano antes.
Marion disse que ele teve o estado de saúde agravado em novembro de 2019, após receber a notícia de que a decisão que indicou o envolvimento de Fernando Aparecido da Silva na morte do filho havia sido anulada pelo então ministro Ricardo Lewandowski, do STF, por falta de provas.
“Meu pai morreu sem ver a justiça. O tempo vai passando, minha mãe envelhecendo. Será que ela também vai morrer sem vê-los na prisão? Então, vai ter que morrer toda a geração de nossa família, porque se minha mãe morrer sem ver a justiça, eu vou largar tudo e vou à linha de frente! E se ainda assim, nada for resolvido, quando eu morrer, meu filho estará treinado para também ir para a luta, porque a gente não vai desistir”, desabafou o filho Carlos Terra Júnior, irmão mais velho de Lucas Terra.
Manobra
Mas há possibilidade – ainda que remota – de o julgamento não ser realizado nesta terça. Isso porque a defesa dos pastores entrou com pedido de digitalização do processo de Silvio Galiza no último dia 17.
“Eles tiveram o tempo para fazer o pedido e só fizeram agora, às vésperas? É óbvio que se trata de mais uma estratégia para prorrogar ainda mais o andamento processual. É importante deixar claro que o processo de Galiza foi encerrado, ele já foi julgado e, ainda assim, tudo sobre ele está nos autos. Agora, cabe à juíza decidir”, declarou Ricardo Paranhos Sampaio, advogado de Marion Terra.
De acordo com o Código Penal, as provas devem ser juntadas até três dias antes do júri, para que todas as partes envolvidas tenham acesso ao conteúdo. O processo de Galiza tem mais de 4 mil páginas.
A defesa da família de Lucas Terra entrou com uma medida para permitir que o júri possa ser gravado, o que foi impedido pela justiça baiana. “A juíza alegou que a medida foi para proteger a imagem dos servidores e dos jurados. Mas pelo Código Penal não há impedimento para a realização das gravações, tendo em vista o exemplo de outros casos de repercussão nacional, como o da Boate Kiss, que foi todo gravado. Por que uns júris podem e outros não?”, questionou Sampaio.
Além da Boate Kiss, ele citou outros julgamentos que foram gravados no Brasil e depois disponibilizados em uma plataforma de audiovisual, como foram os casos Henry, Flordelis e Elize Matsunaga.
O quer dizem as partes
Em nota, Nestor Távora, advogado dos pastores, informou que tanto a acusação quanto a defesa, em audiência realizada em 25 de novembro de 2011, solicitaram que fossem juntados ao processo em questão o caderno processual que resultou na condenação do também pastor Silvio Galiza.
Segundo ele, o requerimento foi deferido pela juíza Vera Lúcia Medauar Reis Moreira em 27 de março de 2012. Diante da iminência do julgamento desta terça-feira, a defesa pediu novamente o procedimento no último dia 17, justificando “a necessidade de que os autos do referido processo estejam disponíveis para o julgamento, para que se tenha o devido acesso durante o plenário”, disse em nota.
No dia 18 deste mês, o Ministério Público estadual (MP-BA) se manifestou favorável ao pedido de adiamento do julgamento dos pastores. “O MP não se opôs à solicitação, realizada pelos advogados dos réus, por prestigiar o princípio de plenitude da defesa, uma vez que parte dos documentos do processo referente a Sílvio Galiza, incluindo seu depoimento, não foi digitalizada e anexada ao processo eletrônico criminal (de Fernando e Joel), ausência que poderia cercear o direito de defesa previsto constitucionalmente”, diz a nota do MP-BA enviada ao CORREIO.
Porém, nesta quinta-feira (20), o órgão informou que o júri está mantido “porque a juíza disponibilizou as peças físicas à defesa”.
A reportagem procurou informações sobre o julgamento junto ao Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), mas não teve resposta até o fechamento da edição.
Relembre o caso
- Março de 2001 – Lucas Vargas Terra tinha 14 anos quando foi estuprado e queimado ainda vivo por pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, no Rio Vermelho. O garoto havia saído de casa para um culto religioso realizado pelo bispo Silvio Roberto Galiza quando desapareceu. Os restos mortais da vítima foram encontrados dentro de um caixote na Avenida Vasco da Gama e ficaram 43 dias no Instituto Médico Legal enquanto aguardavam a realização de exames de DNA.
- Junho de 2004 – O pastor Galiza foi condenado a 23 anos e 5 meses de prisão. Após recurso, a pena foi reduzida para 18 anos e, depois, para 15. Em 2012, ele passou a cumprir pena em regime aberto. Atualmente, não deve mais nada à justiça.
- Novembro de 2013 – A juíza Gelzi Almeida havia inocentado os pastores Fernando Aparecido da Silva e Joel Miranda Macedo de Souza, mas a família de Lucas recorreu e, em setembro de 2015, teve o Recurso de Apelação julgado pelo TJ-BA. Os desembargadores decidiram, por unanimidade, que os dois religiosos, além do já condenado pastor Galiza, fossem a júri popular. A defesa dos pastores recorreram ao STJ, que reiterou decisão do TJ-BA.
- Novembro de 2019 – O caso foi parar no STF. O então ministro Ricardo Lewandowski anulou a decisão do STJ. Na ocasião, José Carlos Terra, que estava internado devido a uma parada respiratória, teve a saúde agravada logo após saber da decisão e morreu no Hospital Ernesto Simões.
- Novembro de 2020 – O caso foi parar na 2ª Turma do STF, que decidiu que os pastores devem ir a júri popular.