Não é exagero dizer que Salvador é uma grande galeria de arte, com a sorte de ser aberta em tempo integral e estar sempre à disposição de qualquer olhar minimamente atento. Fachadas de prédios, de escolas, viadutos, muros, frentes de casas, tudo vira tela, tudo ganha cor. A arte de rua, especialmente o graffiti (ou grafite), pode ser apreciada a qualquer hora, apesar de vibrar mais intensamente sob a luz do sol, verniz natural.
Os traços coloridos estão em todos os cantos, quebrando, sobretudo, a dinâmica da arte institucionalizada, restrita a galerias e centros culturais. A tela é a rua, a inspiração é a rua, e a moldura cotidiana passa a ser as janelas dos carros, dos ônibus, da câmera de celular que registra da beleza à forma como uma pintura interage com a paisagem, o que ela desperta no sujeito que vê.
Afinal, quem pode não ser é impactado pela tela de Robinho Santana, que retrata, no bairro do Comércio, um homem preto diante de um céu extremamente azul, tendo consigo apenas uma planta? O homem está, de fato, voando ou a imagem é a representação de uma pretensa liberdade?
Grande tela de Robinho Santana em um prédio no bairro do Comércio (Foto: Nara Gentil) |
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Cidade Alta, Cidade Baixa, Centro Histórico, bairros nobres e periferias – onde costumam ser abre alas para a construção da relação com a arte –, os traços coloridos do graffiti embelezam a cidade, mas também refletem a história de um lugar. Alfabetos, frases, representações do feminino, as causas sociais, formas geométricas, a fauna a flora, a diversidade racial e religiosa são algumas marcas das telas espalhadas pela cidade.
Ladeira da Preguiça, um dos principais redutos do grafite na cidade (Foto: Nara Gentil) |
Flâneur
Na França do século XIX, a figura que observava e escrevia o cotidiano, na ainda pacata vida urbana, era chamada de flâneur. Hoje, quando uma das principais cidades brasileiras, que foi a primeira capital do Brasil completa 474 anos, retomamos o conceito como referência aos os grafiteiros locais, que cumprem um papel semelhante, como destaca Roca Alencar, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
“O grafiteiro ou o pichador, sempre que passar pela cidade, ele vai procurar as telas. A tela é um espaço da cidade de grande visibilidade para quem passa de ônibus, de carro, a pé e são esses espaços que eles vão buscar conquistar para deixarem a sua marca. Para serem vistos. Mostrar que tem alguém ali que está intervindo na cidade. A cidade é o grande suporte, o laboratório para a produção de arte.”
Bigod o Sapo, um dos criadores do Nova10Ordem, um dos mais atuantes coletivos ligados ao graffiti em Salvador, também reflete sobre o assunto: “Como artista soteropolitano, nascido e criado na Cidade Baixa, umbigo enterrado na Pedra Furada, a gente cresce com as cores da Feira de São Joaquim, com os peixes da maré da Baía de Todos-os-Santos. A gente cresce com a nossa música que é muito rica. Tudo isso, para a gente que desenha, que é artista, é só energia, aquilo que nos dá motivação de estar sempre criando. A gente está dentro dos terreiros, nas escolas, na praia. Tudo é motivo e inspiração para criar. Salvador tem esse potencial gigantesco”.
Relação com as subjetividades
A comunidade do Solar do Unhão, abaixo da Avenida Contorno, é um espaço privilegiado em cores na capital baiana. Desde a entrada, elas estão lá. Na chegada, muito azul e branco, uma referência direta à relação com o mar, paisagem natural da comunidade, e com a rainha das águas salgadas, Iemanjá.
As pinturas que tomam as centenas de residências constroem um extenso painel de ilustrações, com espaço, inclusive, para homenagens. Os rostos de Adriele Muniz e Vô, jovens nascidos e criados na comunidade, estão marcados nas paredes. Apesar da juventude, eles deixaram a vida precocemente. Ela por um acidente de moto e ele pela ação do abraço armado do Estado.
No painel à direita, Vô, filho da comunidade que morreu durante ação policial (Foto: Nara Gentil) |
A relação da comunidade com o graffiti começou em 2011, quando nomes já conhecidos da arte de rua em Salvador – Bigod, Julio, Prisk – foram convidados para pintar em um evento de capoeira na localidade, à época, extremamente marginalizada por parte da mídia televisiva. Desde então, a comunidade abraçou a arte, reconstruiu a própria imagem e sua relação com a cidade, não somente pelas cores, mas pelo trabalho social que integra o movimento grafiteiro.
A chegada das cores à Gamboa foi testemunhada por d. Antonieta, atualmente com 71 anos. Ela mora na comunidade desde 1972. Neste tempo, também viu a chegada de muitas famílias para a região e, também, a inserção da alvenaria, já que, inicialmente, o local abrigava barracos de madeira. Caminhando calmamente pelas estreitas vias que compõem a localidade d. Antonieta é só encantamento. “Olha que coisa linda! Olha esse também. Que beleza!”, repetia enquanto conduzia esta repórter orgulhosamente até a frente de sua própria residência. A fachada, convertida em tela, estampada a imagem de uma mulher negra em cores vibrantes.
D. Antonieta vive no Solar do Unhão desde 1972. É testemunha da chegada das cores à comunidade (Foto: Nara Gentil) |
Ao menos uma das imagens na comunidade da Gamboa é de Nova, 25 anos. Lá está o “Pescador de Ilusões”, que desliza sobre o mar em seu pequeno barco, mas com os olhos marejados. O sol, atrás dele, tem rosto de mulher. Parte de uma geração contemporânea do graffiti em Salvador, Nova representa o avanço das mulheres no cenário urbano, que se expandiu fortemente nos últimos anos.
“Retratar os conflitos mentais, o ambiente interno, o romantismo, a solidão e a interação desse emocional com a rua. Existe mais coisa acontecendo dentro da gente do que a beleza. As cores falam muito. Tem o motivo de escolher um vermelho, um laranja, cores mais quentes, o azul, que já é mais paz”, explica Nova ao falar de suas produções. Nova ainda tem sua assinatura registrada no coletivo PixaMina, que reúne até 40 jovens grafiteiras nas ações do movimento. “Quando a gente chega em um local e coloca cor, as pessoas se identificam, ficam felizes. Você vê mudança do lugar. O intuito, muitas vezes, é levar a arte para onde não tem”, completa Nova.
A alguns quilômetros da comunidade da Gamboa, a alegria e vibração das cores também encontra Danilo Alves, de 29 anos. Há sete anos ele vende água nos arredores do acesso ao Ferry Boat, em Águas de Meninos. Mas na segunda-feira (20), primeira após a realização do Festival Bahia de Todas as Cores (BTC), ele era só sorriso. Olhava para os muros – que deu lugar a um novo mural grafitado por diversos artistas – e simplesmente sorria. “Uma maravilha. Está lindo. Toda hora alguém passa e tira foto. Obra de arte”, observou.
“Olha lá, pintaram até a pedra. Fizeram uma melancia”, continuou entusiasmado. A melancia na pedra que chamava a atenção de Alves compunha uma tela em que uma mulher negra aparece cercada por fatias de frutas diversas, enquanto uma faca cobre seus olhos. A tela está ao lado da Feira de São Joaquim, onde a presença do trabalho feminino é marcante.
Danilo Alves, de 29 anos, se encantou com as novas cores nos muros de acesso ao Ferry Boat (Foto: Nara Gentil) |
Para Roca, Salvador vive atualmente uma retomada da cena do graffiti, muito influenciada pela ação dos próprios artistas. O movimento, para a pesquisadora, vai ao encontro do conceito de direito à cidade. “Um graffiti feito se torna uma referência. Não é a placa da rua. Eles [os artistas] usam isso como marca da cidade. Não é para embelezar, esconder processo de gentrificação [mudança da paisagem em zonas antigas ou populares para atrair pessoas renda elevada]. O grafite tem um compromisso muito maior. Nessas cores da cidade, que venham junto outra produção do espaço e do território”, destaca.
Saiba cinco locais em Salvador para apreciar os murais de graffiti
1 – Comunidade Solar do Unhão, Avenida Contorno
2 – Ladeira da Preguiça, Comércio
3 –Ferry Boat, Água de Meninos
4 – Primeira etapa de Castelo Branco, Subúrbio
5 – Largo do Bonfim, próximo à Igreja do Bonfim
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Para saber mais sobre a história do graffiti em Salvador
Lançado em 2021, o livro “Ruas de Salvador”, organizado por Eder Muniz, é um marco no registro da história da cidade com a arte de rua nas três últimas décadas. Além de compreender o graffiti e a pixação como práticas irmãs, a obra conta a histórias de artistas de diferentes gerações, assim como de suas obras, suas inspirações e anseios. O projeto para a produção do livro foi beneficiado pelo edital da Lei Aldir Blanc, 2020.
Este conteúdo especial em homenagem ao Aniversário de Salvador integra o projeto Salvador de Todas as Cores, realizado pelo Jornal Correio, com patrocínio da Suzano, Wilson Sons, apoio institucional da Prefeitura de Salvador e apoio da Universidade Salvador – Unifacs.