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Maior candomblé de rua do mundo promove encontro de 65 terreiros em Santo Amaro

As ruas históricas de Santo Amaro da Purificação cederam espaço para as estruturas erguidas para abrigar, neste domingo (14), o cenário do encontro de 65 terreiros de matrizes afro-brasileiras de várias nações. No Largo do Mercado, o povo de santo foi chegando devagar e reservou um tempo, após cumprimentos com abraços e sorrisos, para saudar a imagem de Iemanjá e incrementar o presente dedicado a ela e a Oxum, antecipando, assim, parte das homenagens feitas durante o Bembé do Mercado, manifestação religiosa destinada às divindades das Águas para agradecer e pedir pelo bem-estar da coletividade.

Com 134 anos de história, o Bembé foi realizado pela primeira vez por João de Obá, negro escravizado de origem Malé que, um ano após a abolição da escravatura, em 13 de maio de 1989, levou o ritual de candomblé para a praça pública de Santo Amaro junto com seus filhos de santo e pescadores locais, mesmo enfrentando restrições políticas e policiais, além do racismo religioso de camadas da sociedade. Atualmente, a data é comemorada na cidade situada no Recôncavo Baiano para fortalecer a luta antirracista e reafirmar a liberdade de culto ancestral.

“Imagine o que é tocar o candomblé em uma praça pública 134 anos atrás quando ser negro era visto como uma coisa ruim e deslocado a cidadão de segunda classe. O candomblé era crime e pessoas negras não podiam se reunir. Um ano após a abolição, João de Obá reafirmou sua ancestralidade, religião e quem ele era. Isso é muito poderoso. Hoje é uma celebração a essa resistência do povo negro, porque, mesmo agora, bater o candomblé em praça pública é algo revolucionário”, ressalta Cintia Maria, presidente do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab).

Com o intuito de homenagear o criador do evento, na noite de sábado (13), o busto de João de Obá foi inaugurado no Largo do Mercado, logo depois da realização dos ritos festivos ligado ao evento. Produtora da escultura, a artista plástica soteropolitana Annia Rízia contou que, uma vez que não havia imagens de João de Obá, o processo de criação do busto se baseou em referências biográficas pesquisadas pela historiadora Ana Rita e nas características do fenótipo dos filhos de Xangô, de quem João também era filho. Para ela, a exposição da obra em espaço público demonstra um avanço.

Presidente da Associação Beneficente Bembé do Mercado, José Raimundo Chaves, posa ao lado do busto de João de Obá com a vereadora de Salvador, Marta Rodrigues (PT) (Foto: Ana Lucia Albuquerque/CORREIO)

“É extremamente importante termos dentro de praça pública a representação de busto dos nossos heróis. Precisamos ter não só para falar do passado, mas também para haver representatividade positiva para as nossas crianças e adolescentes. Quando estamos na escola, aprendemos que somos descendentes de escravizados, mas não somos só isso. João de Obá é uma referência disso e traz para nós o fogo de justiça para reivindicar o direito de professar a nossa fé”, frisa Annia Rízia.

Patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, em 2012, e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2019, o Bembé contou com importantes combatentes na luta por esses reconhecimentos. Um deles é o presidente da Associação Beneficente Bembé do Mercado, que administra a festividade, José Raimundo Chaves, conhecido como Pai Pote. Ele destaca que o evento é uma forma de preservação da história e da resistência da ancestralidade do povo negro santoamarense a partir do culto aos orixás.

“As homenageadas são Iemanjá e Oxum, mas também todos os outros orixás. As duas ficam em destaque porque Iemanjá é mãe de todos os outros, é a cabeça, enquanto Oxum é o amor. Elas têm tudo a ver”, aponta Pai Pote.

Para honrar as duas divindades femininas, por volta de 8h40, centenas de candomblecistas vestidos com rechilier branco, tecido tipicamente africano, adentraram o barracão levantado na praça do Largo do Mercado. No interior da estrutura, havia ramos de flores, plantas e uma mesa central com os presentes feitos para Oxum e Iemanjá. O cheiro de alfazema inebriava quem passava por perto para depositar uma rosa e os ritmos dos tambores já conduziam quem lá estava para o esperado Xirê, roda de dança feita para evocar os orixás com cantos de diferentes nações, que começou logo em seguida.

Com cantos da nação Ijexá para Oxum, os ogãs, mães, pais e filhos de santo receberam os bolos para Iemanjá, Exu e para a rainha das águas doces. De mãos dadas, representantes da nações como Ketu, Angola, Ijexá se uniram para um bonito gesto de fé enquanto entoavam cantos que levaram algumas testemunhas às lágrimas.

No meio da emoção, havia espaço para o balanço no compasso do maculelê, que fazia os búzios, firmas e miçangas presos nos acessórios dos religiosos tremularem na mesma energia das canções. “Essas músicas são para encantar e honrar os orixás. Eles se sentem empolgados. E para os filhos de santo, é como ver um cantor de quem é fã. Todos nós somos fãs dos orixás”, declarou Nelson de Jesus, filho de Ogun. 

Antes realizado em chão batido e sem a infraestrutura necessária para acolher todos os locais e turistas sob a mesma cobertura, o Bembé do Mercado atrai atualmente candomblecistas de todas as partes, consolidando-se como o maior ritual de candomblé de rua do mundo. Vindo do município vizinho de Amélia Rodrigues, o babalorixá Babá Brandão, do Ilê Axé Onirê Adê Fadaká, pontua que a festividade tem muito significado para o povo de santo pela possibilidade de comunhão com os seus. “A importância é o fortalecimento do nosso povo, porque nossa religião não é bem vista em muitos lugares. Enquanto aqui em Santo Amaro é bem vista, onde eu moro não é”, compara.

Iya Egbé do Ilê Axé Ogun Onirê de Santo Amaro, Mãe Miroca conta que foram as mudanças ocorridas no Bembé ao longo dos anos que proporcionaram uma experiência mais popular da festa em Santo Amaro. “O Bembé aqui antes era muito fraco, o povo antes não tinha condições. Hoje já está elevado, já é uma vitrine, mas todo ano estamos em busca de melhorias, porque João de Obá merece. O xirê que acontece aqui é o momento de dizer aos orixás que estamos em festa e que estamos celebrando a vida, a saúde. O que fazemos aqui é agradecer”, afirma.

Às 9h35, o Xirê do Mercado teve fim e o presente para Oxum e Iemanjá saiu rumo à Praia de Itapema. Lá, a programação do Bembé teve continuidade às 10h com a realização do evento “XI Cultura e Negritude – Roda de Saberes e Formação: Ancestralidade, Religiosidade e Cultura”, na Associação dos Moradores de Itapema, e a entrega do presente às 11h30 na Praia de Itapema.

*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo

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