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Governo Lula ignora apelo de mães que lutam por guarda de filhos com estrangeiros

Foto: Reprodução

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) 15 de outubro de 2023 | 10:10

Em 2023, ao menos 40 crianças deixaram o Brasil em direção aos seus países de origem depois de serem trazidas para o País sem o consentimento de um dos seus pais. Na maioria dos casos, trata-se de mães que voltam para o Brasil com os filhos depois de sofrerem violência doméstica em países ricos. A situação das crianças é regulada por um acordo internacional, a Convenção da Haia, que estabelece como regra o retorno da criança. A norma admite exceções que permitem a permanência do filho – como situações de grave risco –, mas não inclui casos de violência doméstica.

Recentemente, o governo brasileiro evitou se comprometer com um pedido feito por mães que lutam para evitar a perda da guarda de seus filhos para pais no exterior. Mães e organizações ligadas a elas apresentaram ao governo brasileiro uma petição com 37,4 mil assinaturas defendendo a revisão da Convenção da Haia. Procurado, o Ministério da Justiça evitou se posicionar favoravelmente ao pedido das organizações e disse considerar o texto atual do acordo “amplo o suficiente” – a pasta também alega que já trabalha com a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Itamaraty para minimizar o sofrimento das famílias.

Uma reunião sobre a Convenção está acontecendo em Haia, nos Países Baixos, até esta terça-feira (17), com representantes do Brasil e dos outros países signatários. O evento é uma janela de oportunidade para rediscutir o assunto, pois esse tipo de encontro só ocorre a cada cinco anos. Em outra frente, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que poderia ajudar as mães brasileiras – o texto está agora no Senado.

Em 2012, a produtora de eventos Ladjane “Preta” Rosa, de 45 anos, deixou Recife (PE) em direção a Brescia, cidade italiana de cerca de 190 mil habitantes próxima a Milão, no norte do país. O relacionamento com o namorado italiano sempre foi problemático. “E isso, ao longo dos anos, foi piorando. Só que ali eu já estava muito envolvida emocionalmente e dependendo economicamente (do parceiro). Eu achava que se aquele relacionamento acabasse seria por falha minha”, contou. “Eu não conseguia ver o relacionamento como abusivo”, disse.

Quando Ladjane engravidou, tudo piorou. O ex-companheiro a obrigou a fazer um teste de DNA e a submeteu até a um polígrafo (o “detector de mentiras”). Ela passou um mês em Recife após o nascimento da filha e, ao voltar à Itália, sofreu uma tentativa de sequestro por parte do ex-companheiro – ele tentou levá-la a um sítio isolado de sua família na zona rural, sem comunicação com o mundo exterior. Foi quando Preta Rosa decidiu fugir com a filha para Recife.

Desde que voltou ao Brasil, a produtora de eventos convive com o medo constante de perder a filha. O Judiciário já decidiu três vezes pelo retorno da criança à Itália, mas a defesa dela recorreu. “Eu costumo dizer que a Convenção da Haia, para a gente que é mãe, é só uma perpetuação da violência psicológica. Eu já precisei me despedir da minha filha três vezes (…). Toda noite é deitar e agradecer por ter tido mais um dia com a minha filha”, disse.

Atualmente, há 228 casos de subtração internacional em curso no Brasil. Ao longo deste ano, 18 crianças foram retornadas para o Brasil – e 40 foram removidas daqui para outros países após serem trazidas para o País sem autorização de um dos pais, segundo dados do Ministério da Justiça.

Subtração internacional é o termo usado atualmente para descrever o que ocorre quando um dos pais leva a criança para outro país, sem a anuência do outro genitor. Quando a Convenção da Haia foi criada, em 1980, o mais comum era o pai levar a criança. Hoje, 75% dos casos são de mães, segundo dados para o ano de 2021 divulgados no fim de setembro pela Convenção. Via de regra, trata-se de mulheres de países pobres que migram para nações desenvolvidas.

A decisão drástica de fugir com os filhos é quase sempre motivada pelo instinto de sobrevivência: nove em cada 10 mulheres que fugiram em 2022 afirmaram sofrer violência doméstica, segundo levantamento da Revibra, uma organização dedicada a proteger as mães.

Pelo texto da Convenção, a regra é o retorno da criança ao local onde ela vive habitualmente. O tratado, no entanto, admite exceções, como os casos em que há risco para a criança. Quando não há acordo entre os pais, o caso vai para a Justiça Federal e, no Brasil, a parte abandonada é representada pela Advocacia-Geral da União. Atualmente, a Convenção da Haia não considera a ocorrência de violência doméstica como um risco à criança, o que dificulta a luta dessas mulheres pela guarda dos filhos, segundo advogadas especialistas no tema.

O abaixo-assinado impulsionado pela Revibra, pelo coletivo Mães de Haia e por outras organizações pede uma revisão do texto da Convenção para evitar que mães vítimas de violência sejam separadas de seus filhos. Também pedem que os governos passem a coletar dados sobre os casos de violência doméstica e a criação de um órgão regulador para supervisionar a aplicação da Convenção, contando com a participação de especialistas no tema.

“A gente não pede a revogação da Convenção, porque ela pode ser muito útil em vários casos. O que a gente pede é que a interpretação do que seja violência doméstica seja alargada para um foco mais moderno. Já temos avanços no entendimento sobre o que seja a violência de gênero, a violência doméstica e os direitos da criança. Tudo isso evoluiu. E a Convenção da Haia ficou para trás. Ficou parada por 43 anos”, afirmou Juliana Santos Wahlgren, que é fundadora e diretora jurídica da Revibra Europa.

“A petição é um esforço da Revibra e do Coletivo Mães de Haia com outras oito organizações que também trabalham o tema. Grupos dos EUA, Reino Unido, Índia, Austrália, Japão… para tentar mostrar que isso é um problema não somente brasileiro, mas mundial. E como existe aí uma oportunidade de abertura de diálogo na 8ª reunião da Conferência de Haia”, disse Juliana. “Sabemos que lá não é um local onde todas as mudanças acontecem, mas é o local de compromisso. As discussões sobre esta parte da Convenção só ocorrem a cada cinco ou sete anos. Então a gente só poderá reabrir as discussões daqui a muito tempo”, explicou.

Nos últimos meses, representantes das organizações tiveram reuniões com a Presidência da República e a Secretaria-Geral da Presidência, além dos ministérios das Relações Exteriores, da Justiça, das Mulheres e da Igualdade Racial.

Questionado pelo Estadão sobre se defenderia mudanças no texto da Convenção durante a reunião em Haia, o Ministério da Justiça não se comprometeu. Disse apenas que “o texto da Convenção da Haia de 1980 é amplo o suficiente para que os Estados signatários adaptem sua aplicação às realidades do seu país”.

“Na Comissão Especial sobre Subtração Internacional de crianças, que acontecerá em Haia a partir do dia 10 de outubro de 2023, os países se reunirão para discutir melhorias na aplicação da Convenção, tais como o emprego da mediação para que os próprios pais cheguem a um acordo quanto ao país de residência da criança (…) entre outros temas”, disse a pasta, em nota, em referência à reunião que acontece até terça, 17, nos Países Baixos.

O Ministério da Justiça disse ainda que tem “promovido uma articulação” com a AGU, a Justiça Federal e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) para “reduzir o impacto das decisões de retorno” – garantindo, por exemplo, que as mães possam ter contato com as crianças.

No fim de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que pode beneficiar as mães que lutam para manter a guarda de seus filhos. A proposta amplia uma das exceções previstas na Convenção da Haia – a de grave risco à criança – para incluir também as situações nas quais os filhos estão expostos a um contexto de violência doméstica. O projeto está no Senado, na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. A relatora é a senadora Ana Paula Lobato (PSB-MA).

A proposta foi apresentada pela ex-deputada Celina Leão, atual vice-governadora do Distrito Federal, a partir de um pedido das organizações que representam as mães. “Nossa opinião é a de que as mulheres que são vítimas de violência têm o direito de retornar para o país levando seus filhos, com a guarda dos filhos (…). Como não estava clara a interpretação da Convenção da Haia (por parte do Judiciário), eu apresentei o projeto”, disse. Soluções parecidas já foram adotadas por outros países, como a Austrália.

“Na Conferência de Haia, tudo precisa ser aprovado em consenso, e isso é muito difícil de obter, uma vez que são 91 estados-partes. Os países podem tomar medidas internas para ampliar a interpretação da convenção. Então, a gente tem esse PL (o 565 de 2022). No entanto, ele exige bastante atenção. É uma excelente iniciativa para trazer a discussão e estabelecer uma base legal para os juízes possam apreciar a questão”, disse a advogada Janaína Albuquerque, especializada em direito internacional.

“É muito difícil para uma mãe brasileira no exterior conseguir documentar, quem dirá provar, essa violência doméstica. Então, ela retorna para o Brasil sem provas, desesperada. Não é uma tentativa de fuga, de evasão. Muitas vezes é o último recurso para salvar a própria vida e a da criança, achando que vai ter a proteção da lei brasileira, e não é assim que funciona. A Convenção é aplicada na sua letra rígida”, completou Janaína Albuquerque.

Questionado sobre se o governo apoiaria a aprovação do PL 565 de 2022, o Ministério da Justiça evitou se posicionar. “No Brasil, adota-se uma interpretação ampliada para abranger qualquer contexto de violência, seja contra o genitor ou genitora e a criança. Sempre quando há indício de violência doméstica, a Justiça brasileira determina a realização de perícia psicológica, exatamente para confirmar se houve ou não”, disse a pasta, em nota.

A posição é criticada por Juliana Wahlgren, da Revibra. “Esse posicionamento do Ministério da Justiça não condiz com a realidade. (É grande) o número de mães que não têm mais contato com os filhos, que não podem voltar (ao país onde estão os filhos). Há casos de mães que estão com tornozeleira (eletrônica), tanto no Brasil quanto aqui na Europa, porque as autoridades acham que a pessoa pode fugir. Chegamos num grau (elevado) de absurdidade e de confusão”, afirmou.

Estadão

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