Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress
Comunidade indígena tem conflito interno por água e favor político para abastecimento 16 de outubro de 2023 | 07:24
A cada dois dias, sempre antes das 6h, o agricultor Gileno Gomes Silvino entra no ponto mais disputado em Serrote de São Bento (RN): a fila da água.
Um poço com pequeno sistema de dessalinização empoeirado atrai homens, mulheres e crianças até de áreas vizinhas. É a única fonte pública de água doce com oferta gratuita na comunidade indígena.
Ali, parte da população permanece à mercê de carros-pipa oferecidos pela prefeitura. É para poucos a possibilidade paralela de desembolsar R$ 7 por um garrafão de 20 litros de água mineral ou até R$ 400 para abastecer uma cisterna de 16 mil litros.
A renda média inferior a um salário mínimo das famílias da comunidade é obtida com beneficiamento de castanhas de caju e no Bolsa Família.
Nessa busca pela água, histórias que envolvem privilégios e outras relações de poder, casos de conflitos e favores eleitorais são alardeados como típicos nas comunidades do Território Indígena Mendonça.
Depoimentos nessa direção se espalham na porção do território indígena encravada em João Câmara.
O município —com situação de emergência reconhecida pelo governo federal desde setembro por causa da seca— abrange, além de Serrote de São Bento, a comunidade indígena do Amarelão e os assentamentos indígenas Santa Terezinha, Marajó e Açucena.
São aproximadamente 900 famílias e 3.000 pessoas da etnia Potiguara-Mendonça, a maior população indígena do estado.
Carros-pipa do município entregam às comunidades só água salobra, de aparência turva, com pouca ou nenhuma serventia à população. O sabor é descrito como um pouco mais aliviado que o da água do mar.
Essa água usada para banho e atividades domésticas é também opção de parte das famílias para saciar a sede. São comuns os relatos de diarreia associada ao consumo.
A lista para abastecimento com esses carros-pipa não exige cadastro oficial nem dispõe de cronograma formal. Muitas das demandas passam pelo WhatsApp de Francisco Venâncio da Silva, o Nino, assessor do gabinete do prefeito Manoel Bernardo (União Brasil).
“E a água? Qual é o dia que vai chegar por aqui?”, “a cisterna tá seca” e “arruma uma carrada d’água para nós aí” são trechos de áudios que ele recebe.
Pessoas da região estimam espera de até um mês pelo fornecimento. Uma moradora que pediu anonimato afirma que muitos acabam procurando vereadores e depois ficam comprometidos em votar naquela pessoa na eleição seguinte.
“A gente sabe que a água é um direito nosso, principalmente a de beber. Só que para a gente ter esse direito é difícil”, diz a professora Rejane Batista, liderança indígena de Serrote de São Bento.
Liderança indígena da comunidade Amarelão, José Carlos Tavares da Silva conta que promessas políticas que envolvem a água são apostas de candidatos em toda eleição.
Conflitos entre as famílias são registrados na fila do poço, por exemplo, quando alguém pega mais água do que deveria e outras pessoas saem com os baldes vazios. O limite de retirada, por casa, é de 40 litros por dia.
“Pode ser mais ou menos, dependendo da necessidade”, diz Fabiano de Lima Franco, 36, operador do sistema de dessalinização de Serrote de São Bento.
No caso das cisternas, Nino afirma que, em razão de conflitos internos nas comunidades, algumas famílias evitam usar pontos de abastecimento coletivos.
“São desunidos e o maior critério que usamos [para distribuição da água] é colocar em pontos onde a maioria pega. Onde o pessoal vive de briga fica por último”, resume sobre como funciona o sistema.
Apesar de investimentos para ampliação de dessalinizadores, a oferta de água potável é insuficiente e incerta —é esporadicamente interrompida por problemas nas máquinas ou por falta de insumos.
Os chafarizes que o sistema da maior usina na área alimenta voltaram a funcionar no final de setembro, após dois meses em manutenção —e mediante taxas, a partir de R$ 0,50 por ficha de abastecimento, definidas pelas comunidades.
Na comunidade Marajó, um sistema dessalinizador instalado pela Funasa (Fundação Nacional de Saúde), em convênio com a prefeitura, foi inaugurado há mais de um ano, mas até o final de setembro permanecia inativo e tomado por mato, segundo as famílias.
“Esse foi tipo um dinheiro público jogado fora”, diz Kaline Felipe, liderança indígena do assentamento.
A energia necessária ao funcionamento foi ligada após contato da Folha com a prefeitura.
Carros-pipa não chegam ao assentamento Açucena porque, segundo o município, há um poço e um dessalinizador atendendo satisfatoriamente a comunidade.
No local, a cacique Renata Batista de Oliveira afirma que é preciso buscar em Natal, a cerca de 100 km dali, o produto e o filtro necessários para “fazer água doce”.
A situação nas comunidades teria piorado com o encerramento da Operação Carro-Pipa do Exército. Os caminhões com água potável deixaram de abastecer o território indígena há cerca de dois anos, segundo as lideranças.
O município está oficialmente excluído desde agosto de 2022 devido ao vencimento do decreto de situação de emergência e da não apresentação de documentos, disse o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. A lista inclui um relatório sobre a qualidade da água e o nível dos reservatórios.
A doutora em antropologia Taisa Lewitzki chama a atenção para o contexto de desigualdade hídrica como produto das relações de poder.
Ela estuda a região há cinco anos e observa que a falta de acesso à água em quantidade e qualidade não tem causa apenas natural, mas está associada à produção de formas de controle, distribuição, gestão e acesso desigual ao recurso.
Medidas já implementadas, diz ela, melhoram e expandem possibilidades de acesso, mas não resolvem os problemas. Ao contrário, causam disputas entre vizinhos e comunidades, na linha “de quem vai receber mais e quem vai receber menos”.
Na casa de Selma Teixeira, no Amarelão, botijões de água mineral passaram a ser consumidos em meio a dificuldades de logística até as fontes públicas —o setor é o mais distante da água doce na comunidade. Sua filha, Maria Karoline Vitoriano, 28, enche baldes na cisterna para serviços domésticos e banho de cuia.
“Um dia, mesmo se eu não tiver mais existindo, eu queria que ao menos meus netos tivessem água encanada para abrir um chuveiro”, diz Selma.
PREFEITURA FALA EM ENTREGA DE ÁGUA DE ACORDO COM CRONOGRAMA
A Prefeitura de João Câmara diz ter sim um cadastro para atendimento às famílias e afirma que o critério de distribuição é que a comunidade disponha de pontos de abastecimento —cisternas que atendam, em média, de três a quatro famílias.
“A entrega é feita de acordo com um cronograma e estima-se que a água perdure um mês, todavia, temos relatos de que alguns moradores também utilizam a água para o consumo de animais, cultivo de plantas e afins, não priorizando o consumo humano, assim, quando isso ocorre é necessário esperar o próximo ciclo”, diz em nota.
O atendimento por meio de WhatsApp, segundo a Secretaria Municipal de Agricultura, ocorre em situações de emergência. A Câmara Municipal não se manifestou.
Nino, do gabinete do prefeito, disse que recebe salário para “ficar de olho nas precisões das comunidades sobre água”, mas admite que a oferta de água é pouca para muita gente.
A Companhia de Águas e Esgotos do estado disse que o fornecimento segue os padrões de potabilidade, não sendo responsável por condições posteriores de armazenamento.
Segundo Carlos Nobre, engenheiro agrônomo e coordenador da assessoria técnica da Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos, as políticas estaduais de acesso à água funcionam, mas nos últimos anos têm enfrentando “altos e baixos em decorrência da disponibilidade de recursos financeiros”.
Já a Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde afirmou que desde o início do ano envia equipes para avaliar a situação e que elabora um plano de ação para fortalecimento da assistência à saúde.
Renata Moura/Folhapress