Nesta mesma semana que hoje se encerra: no mundo, imagens criadas por inteligência artificial de Trump na cadeia e do Papa Francisco num agasalho branco pra lá de pop; em Pindorama, a comoção pelas 4 inocentes vítimas da Besta de Blumenau; e em nossa província da Bahia, profissionais e empresas de comunicação se unem em rede ao poder público para conter a violência contra jornalistas.
O dilema entre a inteligência humana criadora e a sua criatura, a IA, já não é mais coisa de cinema, como em 2001 Uma Odisseia no Espaço, rodado em 1968 pelo diretor Stanley Kubrick. Os fatos nos impõem o mesmo desafio dos astronautas da Discovery do enredo criado pelo visionário cientista e escritor britânico, Arthur C Clarke.
Como mago que era, ou é, Sir Arthur nos presenteou ciência e literatura mesclados em obra merecedora de leitura e releitura. Assim como a película de Kubrick sempre é recomendável para uma sessão de cinema em casa.
Desperdiçamos o vaticínio do mago que lá atrás, avisava que teríamos a internet, trabalho remoto e amigos se comunicando naturalmente com amigos de qualquer parte do planeta; cantou a pedra da cirurgia robótica e da impressora 3D.
Prova da nossa tragédia como espécie mais evoluída deste nosso sofrido planeta, o intervalo de mais de meio século entre a comoção da vez (ou da hora ?) e a primeira publicação das previsões de C Clarke. A ética, como lhe é própria, jamais acompanharia a velocidade da técnica. Sem os freios da primeira, os avanços da segunda nos colocariam na encruzilhada a que chegamos – como previu com precisão, o britânico. A cada instante, pode-se abrir um novo abismo, como o que se abriu diante de cada pessoa perplexa ao ler/ver/ouvir sobre as 4 crianças de Blumenau.
Sim, amigos se falam independente de onde estejam, e já não é mais necessário mergulhar na deep web para chegar ao submundo onde o que houver de pior na natureza humana se encontra por afinidades macabras. Nesse plano, encontram-se os pontos fora da curva da nossa espécie.
Pessoas que talvez se mantivessem contidas quando não encontravam espelhos onde se vissem apreciáveis, onde suas vozes perturbadas se perdiam no vazio de suas próprias inexistências, passaram a ter com quem reproduzir e reverberar seu desejo de odiar por odiar, com a mesma naturalidade do involuntário movimento de respirar.
Encontram-se, organizam-se, as vezes anunciam intenções pouco antes da consumação dos seus atos, e também os festejam e glorificam autores, através de comunidades em aplicativos de mensagens e grupos de redes sociais.
Mal comparando, estamos atônitos, como estávamos quando o desconhecido novo coronavírus começou a campear. O vírus da violência se espalha on-line, mas seus sintomas se expressam em lágrimas e sangue. Contra ele, ficar em casa pode ser o pior dos remédios, enquanto a rua nos amedronta e a imprescindível convivência se converte em ameaça potencial.
Entre a cruz e a caldeirinha, no início da pandemia, como agora, profissionais de imprensa. Exposição permanentemente igual, virtualmente real e potencialmente letal. A aproximação retórica tem pouco de metáfora e muito mais amparo como verdade factual, quando a noção de pós-verdade já é quase jornal velho.
Não por acaso, recrudescem as violências contra profissionais de imprensa. A Rede de Combate À Violência Contra Profissionais de Imprensa, lançada dia 4, na Associação Bahiana de Imprensa, reúne profissionais, empresas de comunicação e órgãos públicos, como PM, Polícia Civil, Guarda Civil Municipal, Defensoria Pública, Ministério Público e Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. Há esforços semelhantes em outros estados, e todos serão importantes, se forem efetivos no combate, com responsabilização e punição de agressores.
Não por acaso, escolas e imprensa, professoras e jornalistas, assim como cientistas, artistas e intelectuais, somos todos alvos potenciais da Besta. Jornalistas e empresas jornalísticas estão desafiados e aprofundar e qualificar a cobertura sobre fatos violentos, sobretudo quando autores parecerem dispostos, como disse Eugênio Bucci, a “sair da vida para entrar no espetáculo”. E na lógica do espetáculo, o nosso desafio ético: fazer jornalismo sem alimentar o efeito contágio.
Como na pandemia, não nos é dada oportunidade de recuar. Como na pandemia, seguiremos cumprindo a nossa missão de informar, enquanto combatemos a desinformação. E precisamos estar vivos e nos protegermos, solidariamente, enquanto isso. Fundada na colaboração, a Rede é a única vacina disponível.
*Ernesto Marques é jornalista e presidente da ABI – Associação Bahiana de Imprensa.