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A presidiária baiana amante das artes e da natureza que inspirou ‘Central do Brasil’

Um pedido de Socorro deu origem a ‘Central do Brasil’, um dos maiores filmes do cinema nacional, dirigido por Walter Salles e lançado há 25 anos. O tal pedido, no caso, vinha de Socorro Nobre, então detenta do Presídio Feminino, na Mata Escura, que escreveu uma carta a Frans Krajcberg na qual declarava profunda admiração pelo trabalho do artista plástico, falecido em 2017, e solicitava dicas para ter uma vida mais conectada à natureza.

“Uma carta da ex-presidiária baiana Maria do Socorro Nobre para Frans Krajcberg, na qual relatava a sua paixão pela natureza, deu ao cineasta [Salles] a ideia de contar um pouco a história de pessoas que migram para o sudeste e tentam manter os laços com os parentes e o passado”, explicava o colega jornalista Jamil Moreira Castro sobre o enredo do filme, na reportagem intitulada ‘Estação Bahia’, em que anunciava a pré-estreia de ‘Central do Brasil’ no Teatro Castro Alves, na edição do Correio da Bahia de 24 de março de 1998.

O vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim, posteriormente concorrente ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, era lançado na Bahia, seu berço, em evento só para convidados, incluindo a ex-presidiária, condenada por participação no assassinato do irmão em 1988.

Quem lembra bem do reconhecimento de Salles é o também cineasta Sérgio Machado, baiano que entrou na produção do longa primeiro para ajudar na escolha do elenco, depois das locações, evoluindo finalmente a assistente de direção.

“Central do Brasil mudou totalmente a minha vida, porque eu não conhecia ninguém que fazia cinema, não sabia nem por onde começar”, recorda o diretor de de filmaços como ‘Cidade Baixa’ e ‘A Luta do Século’ sobre sua estreia em altíssimo estilo.

Cartinha
Em 1993, Socorro também estreava no audiovisual, enquanto cumpria pena no Presídio Feminino, ocasião em que conheceu, através de uma reportagem, a obra de Krajcberg – este falando sobre seu amor pela natureza e sua opção pela solidão. Identificou-se de imediato e resolveu escrever, ainda no cárcere, uma missiva ao artista, explicando sua condição e admiração.

Krajcberg contou a história a Walter Salles, que acabou se inspirando para rodar um documentário sobre a troca de correspondências entre a então presidiária e o artista: nasceu ali ‘Socorro Nobre’, doc estrelado por ela e também outras presidiárias de Salvador. 

“Após o lançamento do documentário, o diretor passou anos matutando que esta história seria o ponto de partida para um grande filme. E estava certo”, reportou Jamil, que conversou com Socorro sobre a expectativa para o lançamento, naquele março de 1998, já de um segundo filme relacionado à sua trajetória.

“Antes, a minha vida era centrada na tristeza; agora, recebi a felicidade em dobro. Agradeço tudo a Deus e ao Waltinho. A minha vida está tranquila”, contou Socorro, de paradeiro atual desconhecido, antes da estreia do clássico em terras baianas.

Crime
A edição do Correio de 11 de maio de 1988 traz reportagem intitulada ‘Desvendada morte de fazendeiro’, em que Socorro aparece como uma das cúmplices na trama que acabou com a morte de Antônio Bezerra Nobre, seu irmão, então com 39 anos.

O crime na fazenda Sempre Viva, em Ilhéus, teve outros dois implicados: Carlos Augusto Oliveira, então com 31 anos, e Jorge Soares, na época com 23. O alvo do ataque seria um lote de joias avaliado em 71 mil dólares que Antônio tinha de posse. Ao tentar reagir, acabou morto com um tiro no peito e, conforme as investigações apontaram, a autora intelectual do ataque foi Socorro, posteriormente condenada.

Em 1993, tendo cumprido um sexto da pena de 21 anos, a dona de casa conseguiu o regime semiaberto, com direito a sete dias em liberdade a cada quatro meses.

“Foi em uma das voltas de Itabuna [onde morava] para a penitenciária [na capital], após passar uma semana em liberdade com seus três filhos, que ela teve o primeiro contato com a obra e a vida de Krajcberg, através de uma matéria sobre e ECO 92 em velha edição da revista Veja que trazia na bagagem”, cita a reportagem de 98.

Na penitenciária, Socorro ficou pensando fixamente sobre uma das declarações do artista: “A natureza é a minha única família, então não posso perdê-la”. Foi aí que resolveu escrever a carta a Krajcberg, mas sem esperança de que fosse correspondida.

“Ela não sabia que a resposta de sua mensagem havia sido enviada junto com um livro e um cartão, que jamais chegaram à penitenciária. Também não passava pela cabeça de Socorro que a sua carta havia viajado até Paris e apresentada a um amigo do artista, o cineasta Walter Salles”, cita a matéria. O resto é história.

Bilhete
Inspiração para Central do Brasil, Socorro também acabou convidada a participar do filme na frente e atrás das câmeras. É ela, aliás, que aparece na primeiríssima cena, como uma retirante que narra uma carta para a protagonista Dora (Fernanda Montenegro).

Sérgio Machado tem quase certeza que foi essa também a cena inicial rodada. 

Socorro Nobre é a primeira personagem a aparecer em Central do Brasil, por decisão de Walter Salles (Foto: Reprodução)

“Foi uma coisa do Walter de querer homenageá-la. A gravação foi na Central do Brasil, e a primeira pessoa que foi filmada foi ela, eu acho”, diz o diretor, antes de descolar a imagem da ex-presidiária do crime que a encarcerara.

“Eu lembro que ela chegou e tomou conta do set. Era a grande mãezona, que cuidava de todo mundo, que via quem tava cansado, quem não tava bebendo água. Muito doce, sempre um astral, uma alegria de viver que acho que só tem quem já apanhou muito”, comentou o assistente de direção da ocasião.

O posto ele apanhou de uma forma que também tem a ver com uma carta – na verdade, um bilhete.

Sérgio Machado foi convidado à casa de Jorge Amado após curta-metragem feito na faculdade chamar a atenção do escritor; foi Amado quem apadrinhou Machado e o apresentou a Walter Salles (Foto: Acervo pessoal)

“Eu cheguei ao Walter via Jorge Amado. Ele viu um curta-metragem que fiz na faculdade [de Jornalismo, na Ufba], gostou e mandou pro Walter com um bilhete. E a partir daí, a gente começou uma parceria que dura até hoje”, cita Machado, que na mesma véspera do lançamento do filme, dia de apreensão também de Socorro, recebeu do grande escritor o seguinte relato de alívio: “Walter ligou pra mim pra me agradecer, dizendo que eu ter te apresentado a ele, mandado aquele bilhete, mudou o filme”. E é verdade esse bilhete, como se viu de Berlim a Sundance, da Mata Escura a Hollywood.

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