Sempre que morre alguém muito famoso, os jornais impressos têm um desafio: fazer a capa. Sim, já há alguns obituários prontos (soa estranho para quem não é da área, eu sei), mas, em todos os casos, a capa, em geral, é feita no calor do momento. Não é só técnica, tem um monte de sentimentos.
São muitas pessoas pensando juntas e decidindo foto, texto, abordagem, cores, fontes. Tudo é signo. Tudo é rápido. Medo da porra de errar. Todos cientes de que é uma grande e delicada responsabilidade, para um veículo de imprensa, se despedir de pessoas amadas por multidões. E ainda vender o jornal.
Pois, na última terça, ao comentarmos a morte de Rita Lee, num grupo de whatsapp no qual somos apenas três amigos (eu, um advogado e outra jornalista do Correio), minha amiga escreveu “morreu uma deusa, vamos pensar essa capa”. O amigo – ciente da importância de nossa missão – mandou um print com o recado “só não sejam como a Folha de São Paulo”.
No caso, a gente não devia ser assim: “Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores”. Era esse o título da matéria que eles tinham acabado de publicar. Na hora, minha amiga escreveu “imagine”. Eu escrevi “imbecis”, mas, depois, me senti irresponsável.
Fiquei pensando no título e no motivo pelo qual já estava “decidido” que deveríamos odiá-lo.Fiz o que gostaria que fizessem com tudo que publico. Ou seja, chamei a mim mesma à responsabilidade. Li o título de novo, procurando uma mentira. Aí, lembrei da conversa de que Rita, ainda criança, fingia deficiência física pra pedir esmolas. Também lembrei do que todo mundo sempre soube: ela era apaixonada por ufologia. Sobre as drogas, vieram umas cinco histórias na cabeça. Entre elas, as duas que minha amiga – fã apaixonada e raiz – me contou que tem na autobiografia que eu não li.
Diz que um dia ela amarrou um amigo filho de médico pra chantagear e conseguir remédio controlado. Também, segundo minha amiga, tem lá que ela depois se arrependeu de já ter sido encontrada desacordada, chapadíssima, por um dos filhos. Naquele dia mesmo, eu tinha assistido à própria Rita dizendo que faltavam muitos parafusos na cabeça dela, que ela só encontrou alguns depois de se tornar avó de Izabella. Aos quase 60 anos. Ou seja.
Bom, parece que no título não tem mentira, então. Mas e o texto completo? Presta? Fui ler. A autora, Laura Mattos, traz várias curiosidades e coisas que eu não sabia, tudo bem amarrado, afetuoso, bonito mesmo. Diante disso, achei o título bem ruim. Não foi uma boa escolha, tanto que mudaram, depois. Mas estava longe (muito longe!) de ser “ofensivo” ou “desonesto”, como urravam, nos comentários, muitos “fãs” da artista. Mas eu acho que eles não prestaram atenção. Em Rita, digo.
(“Folha de São Paulo se deixa levar pelo desespero, com chamadas desrespeitosas”, “Uma pena a jornalista fazer questão de tratá-la como uma viciada”, “Uma vida absurdamente genial, mas preferem usá-la como uma velha drogada”, “Ficou célebre por sua relação com as drogas?”, “Texto infeliz”, “Faltou um pouco de respeito, da jornalista, a tudo o que Rita representou de bom” … e por aí foi o povo indignado.)
Eu dei risada. Bom, o título foi caça clique? Indiscutivelmente, sim. Eu não devo nada à Folha, nem a Folha precisa de mim, nem eu tô defendendo o jornal, nem conheço ninguém lá. Mas adoro honestidade e, em verdade, vos digo: clique é venda e a gente escreve, também, pra vender. Quem escreve por esporte é que pode se dar ao luxo de ter poucos leitores. Se a pessoa vive disso, não. Título é a placa que você bota na porta da matéria, é anúncio, saiba. E os extraterrestres estão vendo tu criticando a venda dos outros, enquanto se acaba na divulgação do teu produto.
Tem que ter elegância? É bom. Tem que ter cuidado? Sim. Derrapamos nessa? Muitas vezes. Todos nós. Tô careca de ver título ruim. Cometo vários também, infelizmente. Mas também tô cansada de ver publi péssima – e contraditória – nas redes sociais de muita gente que arrota “ética” e “coerência”. Por exemplo. E me deixe quieta pra eu não começar a citar nomes e contar casos, que hoje “tô pouco me fudendo”, igual a Rita Lee.
Que era desbocada, sim. E também dulcíssima. Que “se guiava” por discos voadores e olhava para o planeta Terra com mais afeto e responsabilidade do que a maioria de nós. Que se drogou – pesado, por longos anos – e tinha dos cérebros mais lúcidos que já conhecemos. Que tocava o terror na infância e virou a avó parceira, divertida e afetuosa que a neta acabou de dividir conosco, em imagens belíssimas.
Uso “e” e não “mas”, no parágrafo acima. Só seria possível o “mas”, esse arauto da contradição, sob o prisma da mais profunda caretice. Essa da qual me afasto sempre que possível. Essa que foi a principal antagonista de Rita e que agora, numa imperdoável injustiça, se toma como premissa para “defendê-la”. Aliás, de quê?
A reação dos fãs nutella ao título da Folha traz a última lição de Rita Lee. Um espelho bem grandão colocado diante de muitas caras. É o seu caso? Você também ficou zangado? Então, abra os olhos e veja aí. O que VOCÊ acha que a desqualifica e deveria ser suprimido na despedida? Rita, ela mesma, toda, como era, não é digna de imensas homenagens póstumas? A Rita idosa, quietinha, é mais digerível, em sua opinião?
“Amante dos animais, Rita Lee viveu os últimos anos reclusa, com o marido, em sítio no interior de São Paulo”. Esse título lhe parece mais adequado? Por quê? A que tipo de padrão moral a sua admiração está condicionada? Tá mostrando a obra pras crianças e precisa que a autora tenha sido “bela, recatada e do lar”? Se é “fã”, ouviu as músicas, foi aos shows, ouviu as entrevistas e leu o livro. Mas não aprendeu nada? Vigia, criatura. Assim, a pessoa é presa fácil.
Entre os erros imperdoáveis (eles existem, você sabe) e a santidade dos bebês (os únicos inocentes de tudo e de fato, mas para os espíritas nem eles são), estamos todos nós. “Errando” e “acertando”, entre aspas porque também esses conceitos podem ser questionáveis. Sendo isso E aquilo. Talvez, até, isso POR CAUSA daquilo que, aos olhos da caretice, deveria ser subtraído de cada biografia.
Rita não subtraiu os “aquilos” da própria biografia, publicada em vida. Os “aquilos” sempre foram comentados por ela em muitas entrevistas. Ela, inclusive, continuou cometendo todos os “aquilos” que o avanço dos anos permitiu. Rita era cheia de “aquilos” e não escondia nenhum deles. Por isso que ela foi tudo isso, sabe?
Guiada por drogas, discos voadores, gatos, plantas, cigarros, amor, filhos, netos, ronquenrol, Roberto, sítio, árvores, rebeldia, doçura e por mais um monte de coisas que não sei nem nunca saberei. Guiando multidões para a poesia, para a crítica da “normose” e, principalmente, para a liberdade. Aí é que tá. Liberdade.
(“Padroeira da Liberdade”, lembra? Ela gostava de ser chamada assim.)
Liberdade, inclusive de ser isso E aquilo. De errar e acertar. De se dar muito mal e voltar atrás. De se destruir e se reconstruir. De não esconder a própria subjetividade. De admirar, em tempos tão moralistas, alguém que tocou o terror. É o fato.
Rita Lee, com todos os seus acontecimentos, inteira, é que é massa. Ela, que foi um poderoso remédio anti-hipocrisia, em várias áreas. Então, pela bença de sua mãe, em respeito à memória de Rita, por amor ao planeta, à humanidade e aos animais: respire, mentalize luz verde, receba essa última dose e, principalmente, deixe de presepada.
(Dedico este texto ao meu filho e à minha mãe. Com o lembrete de que mães também são pessoas e não santas. São isso E aquilo. E prometendo a Leo que eu vou parar de gritar, porém não garanto, mas continuo tentando e, um dia, quem sabe, chego lá.)