Amor fosse música

O menino acordou feliz sem razão alguma. Pulou da cama bem cedo, mas preferiu ficar quieto por alguns minutos, protegido pelo silêncio do quarto, escutando os sons que vinham da cozinha, onde a mãe parecia reger uma orquestra de ruídos. Se prestasse bastante atenção na sinfonia, conseguiria até distinguir os naipes.

Panelas e acessórios de limpeza, regidos pela batuta da maestrina, soavam a cordas, madeiras, metais e percussões que, límpidos, compunham uma peça musical única. Era assim que a mãe marcava o tempo, determinando o ritmo da casa, impondo a entrada e o corte dos instrumentos, estabelecendo o compasso da infância.

No futuro, talvez viver viesse a ser tão complexo quanto executar a Sonata para piano em si menor de Franz Litsz, mas, naquela época, assemelhava-se a tocar ao piano a Sonata Facile, a peça para principiantes composta por Mozart. “Difícil para adultos, muito fácil para crianças”, como definira o músico Arthur Schnabel.

Só bem mais tarde, entenderia as dificuldades enfrentadas pela mãe, ao executar os movimentos da grande música. Naquela manhã, enquanto ainda não se integrara ao allegro majestoso do cotidiano, que na rua se alargava em andamento leve e ligeiro, o menino buscava guardar em seus ouvidos o invenzio da maestrina.

Talvez, algum dia, fosse possível reconstituir de memória a partitura das manhãs, a partir dos sons banais que a mãe regia: tampas de alumínio, arrastar de sandálias, colheres revolvendo o fundo das xícaras, vassouras removendo vestígios de poeira nos cantos, água correndo, escorrendo no piso, nos pratos, sumindo nos ralos.

E as vozes familiares que, de súbito, se erguiam em diálogo breves, misturando-se ao ronronar suave de algum gato que, assim como o menino, despertava feliz para o mundo sem causa alguma. Ali, bem ali, naquele trecho, até que seria bom se o tempo fosse como o andante de uma sonata, nem muito rápido, nem muito lento.

Melhor ainda se houvesse um pouco de silêncio, antes que começasse o terceiro ato. Um quarto do qual se pudesse sair numa manhã qualquer de maio para aplaudir a orquestra, evocar sinfonias. E, então, o tema principal da existência se repetisse para sempre, imenso, por dentro, entre centenas de eventos secundários.

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