InícioEditorialAs provas de assédio que podem ser buscadas em apuração sobre Almeida

As provas de assédio que podem ser buscadas em apuração sobre Almeida

A sensibilidade e a dinâmica em torno de casos de assédio sexual contribuem para que, em muitas ocasiões, esse crime ou não seja denunciado ou fique impune. Alvos de figuras não raro poderosas política ou economicamente, as denunciantes geralmente são mulheres em posições subalternas às de seus agressores, que se veem feridas pelo assédio, um crime normalmente cometido na presença de assediador e assediado, mas também intimidadas pelo constrangimento e o medo de julgamentos indevidos.

Leia todas as reportagens da série especial “Uma acusação de assédio abala o governo Lula”

Com esses fatores traduzidos em dificuldades para se punir os agressores, investigações sobre assédio sexual, como no caso do ex-ministro Silvio Almeida, revelado pela coluna e apurado pela Polícia Federal, são sensíveis e requerem cuidados especiais. O objetivo final, mais do que comprovar um ato específico, dizem especialistas ouvidas pela coluna, deve ser montar o amplo quebra-cabeça de uma prática contínua.

Do início ao fim das apurações, o sigilo e o segredo de Justiça são primordiais. Isso porque os investigados, ao saberem das declarações de suas supostas vítimas, podem tentar obstruir a busca pela verdade, retaliar e planejar represálias às denunciantes. “Pessoas investigadas por assédio sexual têm um perfil que socialmente não demonstra desvios de personalidade. Eles deixam em dúvida a palavra da vítima por serem manipuladores a ponto de serem considerados acima de qualquer suspeita”, disse Gabriela Manssur, advogada e ex-promotora do Ministério Público de São Paulo especializada no combate à violência contra a mulher.

Por meio do sigilo, também são preservados os relatos sensíveis das vítimas aos investigadores e se evita que elas sejam revitimizadas por opiniões indesejáveis sobre seu comportamento em ambientes familiares ou de trabalho. “É preciso criar as condições necessárias para que essa experiência, que não tem como não ser difícil, seja o menos difícil possível. A garantia do sigilo é importante para evitar a contaminação da investigação, evitar que vire um assunto de fofoca de corredor”, disse Mayra Cotta, advogada especializada em gênero que participou de discussões em torno da Política de Enfrentamento ao Assédio Moral, ao Assédio Sexual e à Discriminação, lançada pela Controladoria-Geral da União (CGU) em agosto de 2023.

A comprovação de situações em que o assédio ocorre, normalmente presenciadas somente por assediador e assediado, também é buscada de modo distinto em relação a outros crimes. Nesse sentido, Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem o entendimento consolidado de que, quando se trata de crimes sexuais, a palavra da vítima ganha peso diferenciado como meio de prova.

Ao longo das apurações, as narrativas das vítimas são corroboradas por elementos como mensagens eletrônicas, e-mails, laudos psicológicos, relatos de outras vítimas, depoimentos de testemunhas diretas, que presenciaram os assédios, ou indiretas, como amigos e colegas de trabalho do alvo de assédio — leia ao final da reportagem casos em que testemunhas e mensagens de WhatsApp contribuíram para a condenação de acusados por assédio.

“Outros crimes, como furto ou homicídio, são consumados em um ato, e se busca a prova daquele ato específico. O assédio raramente se consome em um ato específico, ele é um processo, um encadeamento de condutas que geram um quadro de assédio”, disse Mayra Cotta. A advogada citou como exemplo o depoimento à PF da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, uma das supostas vítimas de Silvio Almeida, segundo a qual o assédio do ex-ministro começou ainda em 2022.

“Quando se olha para o assédio como um processo, entendemos que há milhares de elementos de prova que corroboram o processo narrado pela vítima. É daí que vem a importância da palavra dela”, completou a advogada.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cresceu 14,3% entre 2020 e 2023 o número de novos processos sobre assédio sexual na Justiça do Trabalho. O percentual correspondeu a 22,7 mil casos aportando nos tribunais. No mesmo período, o volume de processos julgados envolvendo esse crime por juízes trabalhistas avançou 44,8%.

Para Gabriela Manssur, apesar do crescimento, os números ainda são baixos. “Temos ainda um número baixo de denúncias e condenações, exatamente por conta dessa fragilidade probatória. Muitas vezes as mulheres não possuem poder aquisitivo suficiente para contratar advogados, sendo que os réus se cercam por advogados especialistas de alto escalão”, disse.

Veja abaixo casos recentes em que acusados de assédio foram condenados, e quais provas foram consideradas pela Justiça ao sentenciá-los:

Mensagens ajudam a condenar professor de universidade federal

No começo de setembro, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) condenou um professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) pelos crimes de assédio sexual e importunação sexual contra uma aluna, cometidos em 2019.

No processo, além dos relatos da estudante sobre as investidas do professor, um homem de 52 anos, mensagens enviadas por ele no WhatsApp também foram consideradas pelo tribunal ao condená-lo por assédio.

Conforme a denúncia do Ministério Público Federal, apresentada em junho de 2021, o professor universitário constrangeu a aluna e se valeu de sua posição para “obter vantagem ou favorecimento sexual”.

Segundo a acusação, em março de 2019, em uma reunião agendada com a estudante da Furg, o professor trancou a sala, guardou a chave no bolso e se sentou ao lado da vítima. Durante a conversa, ele falou sobre a influência que teria na universidade e ofereceu a ela uma bolsa de estudos, além da oportunidade de publicar um artigo científico. Nesse momento, então, passou a mão na perna da vítima e segurou sua mão.

A denúncia narra que outras pessoas chegaram ao local e o professor conduziu a estudante a outra sala. No percurso entre um local e o outro, ele teria elogiado a beleza da aluna e dito que ela o estimulava sexualmente em sala de aula. Já na sala, ele fechou as cortinas, passou a mão na perna da jovem, começou a abraçá-la e tentou beijá-la na boca duas vezes. Ela virou o rosto e ele a beijou no rosto e no pescoço.

Em seu depoimento, a aluna disse não ter intimidade com o professor e que mal o conhecia, tendo começado a cursar a disciplina dele havia poucos dias. Ela também contou que o assediador pediu o número do seu celular e, por meio do WhatsApp, elogiou insistentemente sua beleza, além de convidá-la para encontros fora do ambiente acadêmico e fazer diversas insinuações de conotação sexual. As mensagens foram enviadas antes e depois da reunião em que o professor investiu contra a estudante.

Com base no depoimento da vítima e nas mensagens no WhatsApp, ele foi condenado em primeira instância na Justiça Federal a dois anos e três meses de prisão pelo delito de importunação sexual, em outubro de 2022. No TRF-4, em segunda instância, os desembargadores federais da 8ª Turma mantiveram a condenação e também o consideraram culpado por assédio sexual.

“Quando o réu, na condição de professor, constrange a vítima, mediante reiterados e desproporcionais elogios à beleza física, solicitando seu número de telefone, insistindo em mensagens por aplicativo, para manter esses elogios descabidos e ainda convidá-la para encontro fora do ambiente acadêmico, a ponto da vítima inventar outros compromissos para se esquivar de tais ‘convites’, caracterizada está, autonomamente, a prática do crime de assédio”, afirmou o relator, desembargador Loraci Flores de Lima.

A pena do professor da Furg foi aumentada para três anos e três meses de detenção, substituída por medidas como prestação de serviços à comunidade e proibição do exercício de função pública com destinação de verbas e bolsas em universidades públicas. Também foi decretada a perda do cargo público e a proibição de acesso a ambientes educacionais, como escolas e universidades.

Relatos de vítima e testemunha levam a condenação de militar

Outro caso recente, este decidido pela Justiça Militar, mostrou como os relatos da vítima e de uma testemunha, somados a desdobramentos psicológicos sobre alvos do assédio, podem levar a uma condenação por esse delito.

Em abril deste ano, o Superior Tribunal Militar (STM) condenou um suboficial da Marinha por assédio sexual cometido em agosto de 2022 contra uma colega de patente inferior, a de primeiro-sargento. A decisão do STM mudou o entendimento da primeira instância da Justiça Militar, que havia absolvido o militar por falta de provas.

O caso ocorreu dentro de um navio da Marinha, no qual a vítima havia sido designada para participar de um curso de meteorologia aeronáutica. Segundo a acusação do Ministério Público Militar, em uma das aulas, ao lado de outra sargento instrutora, o acusado fechou a porta e disse “agora é comigo”.

O suboficial então se deitou no chão de barriga para cima e gesticulando com as mãos, chamou a vítima para deitar sobre ele: “Agora é sua hora de pagar sua etapa, pois eu consegui a sua vinda para o navio. Sou um beliche”. A militar vítima do assédio reagiu dizendo que nunca se prostituiria.

O caso foi levado ao comando da embarcação, responsável por abrir uma investigação que levou à denúncia pelo Ministério Público pelo crime.

À Justiça, a vítima e a testemunha relataram o assédio. A primeiro-sargento disse que tinha confiança no acusado e que, depois do caso de assédio, iniciou tratamento psiquiátrico em uma unidade de saúde da Marinha. Ela também afirmou que foi exposta em sua unidade militar. O acusado disse à Justiça que se tratava de uma brincadeira.

No STM, diante dos relatos de vítima e testemunha, o militar foi condenado por unanimidade a um ano de detenção. Em seu voto, o relator, ministro Lourival Carvalho Silva, afirmou que o comportamento do suboficial “tanto em razão das frases por ele ditas quanto, sobretudo, pelo gesto de deitar-se no chão e convidar uma subordinada para se juntar a ele, adequa-se, com perfeição, ao significado do verbo constranger, núcleo ativo do tipo penal de assédio sexual”.

 

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