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As vilas sem nomes

Um varal de arame se estendia horizontalmente, rente ao muro mal talhado de cimento que fazia fronteira entre duas avenidas estreitas de casas. Ali viviam algumas famílias que conhecíamos bastante. Seu Miguel e Dona Olga ocupavam o único sobrado da vizinhança, voltado para a rua principal, onde automóveis trafegavam em alta velocidade, em contraste com o ritmo lento das vilas sem nome.

Todos contavam histórias tristes de bichos atropelados, porque os animais de estimação viviam tão desnorteados quanto nós, no hiato entre paz e alvoroço. Ao ultrapassarem os limites bucólicos das portas, caíam no redemoinho do trânsito. O mesmo acontecia com os humanos, quando deixavam o afeto coletivo das vilas. Ao fim de cada jornada de trabalho, retornavam exaustos de atropelamentos subjetivos.

Se ficávamos doentes, Dona Olga aplicava em nós a temida Benzetacil, espécie de Drauzio Varella dos medicamentos injetáveis. Doía, mas curava de todo mal ou quase. Ao lado de casa, vivia a dulcíssima Tia Miná, que sustentava a família graças a uma máquina de costura que parecia funcionar dia e noite. Eu sentia um grande afeto por ela e considerava suas filhas as moças mais elegantes do mundo.

Fui salva de morrer na infância, pela segunda vez, por uma delas, que machucou os antebraços, amparando os tijolos do muro que desabou sobre a minha cabeça de oito anos. Alheada, nem notei quando a estrutura desmontou por mágica e todo o peso de sua verticalidade de cimento veio abaixo. A primeira vez em que fui salva de morrer na infância? Bom, isso eu já contei antes numa crônica. 

Foi quando o sarampo “recolhido” fez de mim uma criança desenganada pelos médicos e um tratamento caseiro com cânfora, por teimosia e coragem de minha mãe, permitiu que me recuperasse por completo e sem sequelas. Milagres? É certo que nem tudo se sabe dos mistérios entre os céus e a terra e que nada supera ter um santo forte. De todo modo, acho que devo uma ou duas velas ao Senhor do Bonfim.

É Domingo de Páscoa e penso no cotidiano simples nas vilas que hoje têm nomes. Aquela em que morei recebeu o do meu avô paterno. Não sei se ele gostaria dessa homenagem ou a quem interessam essas histórias. Minha mãe, Seu Miguel, Tia Miná ou Dona Olga. A vida é tão veloz quanto os automóveis que colhiam os bichos perto de casa e seguiam adiante, como se fosse nada, os faróis ainda sujos de sangue.

Kátia Borges é escritora e jornalista.

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