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Chico Buarque e o samba invisível

Foto: Ricardo Stuckert/PR

O crítico literário e ensaísta britânico George Steiner, em entrevista ao programa de TV O Belo e a Contemplação, lamentou que uma passagem de certo romance de Hemingway havia passado a ter uma nota de editor para explicar uma referência. Era sinal de que mais uma imagem, mais uma metáfora compartilhada se perdera enquanto significado comum e se transformara em alguma expressão do passado. O seu pesar é porque ele sabe que a cultura é uma memória vivendo sem uma mente, então é preciso que se equilibre de forma invisível em meio a todos nós, mostrando-se e revelando-se a partir de nós e de seus rastros. Se algo da cultura se perde, a sensação de cada um de seus guardiões é como aquela de Francisco Buarque de Hollanda em Roda Viva: “A gente estancou de repente, ou foi o mundo então que cresceu”.

Por falar em Chico Buarque, podemos afirmar com força e samba que o fio invisível de seu pedaço na cultura irá se manter, pois passará de boca a boca, de ouvido a ouvido, como um telefone sem fio que se mantém comunicando, justamente porque as pessoas querem continuar na brincadeira de roda que é sua obra. Feito as suas crianças idílicas na canção João e Maria, em que “agora eu era” é o chamado para que o presente evoque o passado, também continuamos a fazer de suas imagens alguns caminhos nossos de imaginação e fantasia. 

Eu mesmo presenciei um “momento Chico” entre os mais novos, ao levar o violão para a sala de aula no fatídico dia 20 de abril, em que as escolas do Brasil foram ameaçadas por atentados e talvez também por ruídos propositais para que o medo se instaure. Empunhei o instrumento musical, depois da terceira ou quarta música mais “jovem”, um pedido justo por João e Maria, vindo de quatro ou cinco adolescentes. Era evidente que eles haviam escutado em algum trabalho de escola ou em algum programa em comum, mas só o fato de aquela música agora se tornar um desejo espontâneo já a tornava inteira e renovada. Meus quatro ou cinco acordes de tocador improvisado não poderiam satisfazer o pedido, mas fiz questão de entoarmos à capela. E não fizemos feio. 

Não é um acontecimento isolado. Ainda escuto o mesmo “ohh” ano a ano quando, ao fim de uma aula para adolescentes sobre o pensamento de Sérgio Buarque de Hollanda, quando eu acrescento: “E além de tudo era o pai de Chico!”. Dessa forma o fio invisível se alonga, pois se os dois, pai e filho, estão ligados em uma grande rede com a cultura do século XX e XXI, a obra do primeiro capta o nosso passado como um todo. 

O tipo de passado que infelizmente se atualiza como presente, tal como se aborda em Raízes do Brasil, que é a insistência geral em se fazer da coisa pública um conluio privado, a cordialidade que se expressa em um estilo passivo-agressivo de maquiar explorações, violências e preconceitos, o estilo aventureiro de ocupar espaços e territórios que culmina mais em um eterno improviso do que um planejamento de projeto de país. Eis a herança de percebermos que as leis não vingam, as ideias não se tornam sérias, porque por séculos o povo brasileiro precisou sobreviver sem que houvesse instituições para pedir guarita e eis que ser amigo do amigo do senhor é bem mais valioso do que ter uma carteira de identidade.  

Neste caso adianta sim chorar sobre o “leite derramado”, esta expressão clichê, mas tão nítida. No livro de título homônimo do escritor Chico Buarque, um senhor já bem idoso de nome Eulálio está internado em um hospital e conta as desventuras de sua família rica do Rio de Janeiro que teve sua glória alcançada através das benesses de um Brasil colonial, imperial e escravocrata. É preciso curar esse modelo social. 

Tanto que o personagem senil idealiza a sua plena recuperação e fantasia um casamento com a enfermeira, dizendo: “Quando eu sair daqui, vamos começar uma vida nova numa cidade antiga, onde todos nos cumprimentam e ninguém nos conheça” (p. 29). Sim, vida nova nesta cidade antiga que já é esta “jovem nação”, mas agora tendo seus concidadãos como iguais, pois ninguém então é maior do que ninguém e, ainda assim, ou por isso mesmo, bem se cumprimentam. Não podemos ser só “essa gente”, um misto de desleixo e truculência, com esse sabor decadente do que poderia ter sido mas não foi, como o protagonista Manuel Duarte do romance de 2019 carrega: um autor de livros históricos que não tem mais ideias, pois afinal quem não tem mais projetos sólidos para o futuro não sabe o que buscar no passado. 

Do contrário sobraria somente nostalgia, como no conto Copacabana do livro Anos de Chumbo, em que só resta lembrar-se de artistas distantes e já mortos em suas passagens por hotéis e pelo calçadão. Não queremos somente memórias, queremos cantar o que foi presente ontem e que pode ser presente agora. Francisco Buarque de Hollanda está no Kindle e na playlist.    

Saulo Dourado é escritor de livros de ficção e professor de filosofia em colégios de Salvador
Opiniões e conceitos expressos no texto são de responsabilidade dos autores

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