Na sexta-feira, 01/11/2024, compareci à 15ª edição do festival Janela Internacional de Cinema do Recife que se estendeu até o dia 08 de novembro com uma programação de longas e curtas-metragens, merecida homenagem à talentosa cineasta Kátia Mesel, incluindo debates e masterclasses sobre o audiovisual.
Dois fatos marcantes engrandeceram a abertura do festival: a exibição do filme “Manas”, dirigido pela premiada cineasta Marianna Brennand que revela a crueldade do abuso sexual paterno, crime normalizado e praticado contra crianças nas balsas do Rio Tajapuru, em Marajó, e o faz com tamanho cuidado e sensibilidade que não expõe a violência “de forma gráfica na tela”; o outro fato foi a reabertura do Cinema São Luiz monumento histórico do Estado de Pernambuco, obra que integra um robusto programa do governo estadual de modo a estimular, sustentavelmente, a economia criativa.
A esta altura, o leitor(a) poderia perguntar o que tem a ver estes eventos com o filme franco-italiano Cinema Paradiso? Impossível, beirando oito décadas de vida, não ratificar a mensagem publicitária criada por Luiz Severiano Ribeiro: “Cinema é a maior diversão”, e sem ofensas à forma de distribuição digital (streamings), agregar “cinema de rua”.
De fato, este fascínio pela sétima arte está intimamente ligado ao “espirito do tempo” atuando sobre a tecnologia disponível nos quadrantes de um determinado desenho urbano das cidades bucolicamente espalhadas pelos subúrbios. O fenômeno da urbanização desordenada verticalizou moradia e a desigualdade social se encarregou de gerar a cidade dual: a dos bairros afluentes e o das periferias carentes.
Pois bem, o “cinema de rua” refletia as condições socioeconômicas dos bairros: “chiques” ou modestos, ofertando um entretenimento relativamente acessível e conquistando adeptos da meninada aos idosos; dos exigentes cinéfilos às plateias que se encantavam com mocinho/herói dos faroestes americanos. Sem contar com o “escurinho” que permitia aos casais o beijo reprimido pela donzelice do patriarcado reinante.
O furor da modernidade nos deixou órfãos do “cinema de rua”. No entanto, sua influência e herança continuam vivas. Tão vivas que inspiraram filmes em que o cinema é o tema central. No caso do Recife, o documentário “Retratos Fantasmas”, produzido pelo talentoso cineasta Kleber Mendonça Filho, ao narrar o esplendor e a agonia da sétima arte exibida em salas, faz uma emocionante declaração de amor ao cinema.
No dia histórico da reabertura do cinema São Luiz, vivi uma tempestade de sentimentos. Lembranças e saudades entrelaçadas respeitavam o meu silêncio no burburinho de encontros, reencontros, cumprimento formais e abraços afetuosos. Naquele momento, revisitei o filme que me marcou definitivamente: o premiadíssimo Cinema Paradiso (Oscar 1990 – EUA, melhor filme em língua não inglesa e, entre outros, Globo de Ouro, 1990, melhor filme estrangeiro).
Meu olhar não se limitou a um impulso nostálgico que me fez recordar as tardes de domingo no Cine Torre ou o adolescente que gastava grande parte de uma pequena mesada na bilheteria do Cinema São Luiz e no caixa da inesquecível sorveteria Gemba. O enredo do filme me deixou algumas lições: o amor como força prodigiosa que se manifesta entre pessoas completamente diferentes na idade e na distância (o velho Alfredo, o projecionista cinematográfico e o menino levado, o esperto Totó, que construíram sólida amizade paternal e filial numa experiência transformadora); o passado, confesso, me perturba, quando sentido e contemplado em bloco (o exemplo é o retorno de Salvatore (Totó) de Roma, onde era um cineasta bem-sucedido, para o funeral de Alfredo, na Sicília, depois de três décadas, em obediência ao próprio Alfredo que aconselhou: “Vá e não volte mais. Eu estou velho e você tem o mundo pela frente”). Salvatore voltou. Sofreu diante de vazios e ruínas; com as lágrimas da gratidão banhou a inevitável despedida e seguiu adiante obedecendo à sabedoria do velho amigo.
De verdade, não consigo encarar a passado nas suas diversas dimensões. Seleciono retalhos dos fatos ou fragmentos de imagens de modo que não provoquem as dores da melancolia. Para mim, já bastava contemplar o renascimento de uma referência histórica, a reverência, na entrada, ao painel de Lula Cardoso Ayres, quando, de repente, o “escurinho do cinema” foi iluminado pelos majestosos vitrais que ladeiam a tela.
Foi um momento mágico que me salvou da armadilha do tempo. Não estava diante do passado, mas da beleza do aqui e daquele agora.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda