Em uma casa bagunçada, cadeiras de pernas pro ar não causam espanto, cozinha acumulando louça suja e lixo espalhado também não. Isso deve explicar os motivos pelos quais a mixórdia cotidiana do país não mais nos assombra. É fato que o emprego cresceu e a inflação cedeu, afastando, pelo menos por hora, desastres maiores na economia – e não temos mais de nos confrontar com o negacionismo e a truculência diária do ex Jair Bolsonaro. Ainda assim, quase tudo parece fora do lugar: a potência verde Brasil, com credenciais para influir no mundo, aposta fichas em combustíveis fósseis, parlamentares só pensam em dinheiro, virando a cara para quem os elegeu, o juiz da democracia usa poderes autoritários.
Mesmo reconhecendo os méritos dos ministros do STF em colocar freio nos arreganhos golpistas, os supremo-togados têm, por vezes, ultrapassado os limites do razoável. O ministro Alexandre de Moraes investiga ações antidemocráticas há quase cinco anos, às quais se somaram o 8 de janeiro. Ele conduz as diligências, despacha providências nos autos e julga, o que já é meio fora do eixo. Na semana passada, autorizou buscas e apreensões contra o líder da oposição na Câmara, deputado Carlos Jordy (PL-RJ), que, mesmo sustentadas pela Procuradoria-Geral da República, parecem ter indícios frágeis para ações desse porte, a não ser que existam dados sigilosos na apuração que vão além das mensagens de whatsapp que vieram a público.
Dias Toffoli, indicado por Lula e que se tornou seu algoz na Lava-Jato, parece querer purgar seus “pecados” com decisões monocráticas para beneficiar réus e suas empresas condenados por corrupção declarada. Um libelo em favor da máxima nacional de que o crime por aqui, quando cometido por poderosos, sempre compensa.
O ano terminou com o Congresso aprovando indecentes R$ 5 bilhões para financiar as eleições municipais, e o novo começou com os parlamentares fazendo beiço para a tentativa do ministro da Fazenda Fernando Haddad de acabar com a farra de benefícios tributários para setores que dizem, mas não comprovam, são mega geradores de empregos. Haddad jogou pesado com uma Medida Provisória para anular um revés parlamentar, método no mínimo descortês. Queria e foi feliz em reabrir negociações sobre o tema. Assim como conseguiu atrair os evangélicos para a sua mesa depois de suspender a isenção de impostos dos pastores.
Mas o bom menino Haddad também tem lá suas incongruências. Corretamente, continua a defender o déficit zero para este ano mesmo contra o seu partido. Quer porque quer aumentar a receita – sem reduzir gastos. Como não é mágico, aumenta impostos fingindo que não é isso o que está fazendo. Foi o que se viu com o salário mínimo, que cresceu nominalmente, mas teve seu preço: quem ganha até dois mínimos – mais de 2,4 milhões de brasileiros – não mais está isento de imposto de renda, e passa a engordar os cofres do Tesouro. Manobra feia.
Com isso, “o governo dos pobres”do presidente Lula faz com que assalariados de baixa renda financiem o estado, caríssimo e perdulário, que, de quebra, não impõe limites a remunerações públicas milionárias.
Lula vai mais longe. É dele a escolha de lançar o Brasil na contramão do mundo ao investir em combustíveis fósseis, com regalos fiscais à indústria automotiva – paixão de origem do metalúrgico -, defesa da exploração de petróleo na bacia equatorial amazônica e retomada do aumento do refino de petróleo. Nesse caso, acompanhado de um discurso entre a fantasia e a comicidade (se não fosse sério) de que os desvios comprovados do escândalo que acabou conhecido como petrolão fizeram parte de um complô dos Estados Unidos para destruir a Petrobrás. Bom lembrar, que à época, o presidente americano era Barack Obama, democrata que aplaudiu Lula como “o cara” da vez.
Mais grave: o Brasil de Lula tem rechaçado o Ocidente, como se a ditadura chinesa e a autocracia russa, nascida nos escombros do comunismo soviético, fossem mais aderentes aos nossos valores do que as democracias européias e os Estados Unidos, puerilmente ainda pintado como o “Grande Satã”. Facilitou a entrada do Irã no Brics, presidido pela ex Dilma Rousseff, a despeito de o país ser um dos principais financiadores dos grupos terroristas como Hamas, Hezbollah, Houthi e Brigada Fatemi Youn, na Palestina, Líbano, Iêmen e Síria, ameaçando usar armas nucleares para impor a hegemonia islâmica. Tudo a ver com o Brasil.
Embora alimentasse relações fraternas antigas com ditadores e ditaduras – Venezuela, Cuba, Guatemala -, Lula venceu as eleições de 2022 por conseguir convencer a maioria da natureza democrática que imprimiria a seu governo. O primeiro cumprimento que recebeu minutos depois de eleito foi do presidente americano Joe Biden, gesto que evidenciava o repúdio dos Estados Unidos a tentativas golpistas. Devolveu a gentileza como um amigo da onça, optando por apoiar países que têm ojeriza à democracia. Pior: sem qualquer ganho para o Brasil, que, com a pá virada, insiste na sua desarrumação.
Mary Zaidan é jornalista