InícioNotíciasPolíticaDemocratas desenharam roteiro para uma maioria (Por Pedro Guerreiro)

Democratas desenharam roteiro para uma maioria (Por Pedro Guerreiro)

Euforia e confiança. O ânimo reinante na convenção democrata de Chicago assemelhou-se ao da convenção republicana em Milwaukee, que se realizou há pouco mais de um mês, mas que parece agora pertencer a outro ano político distante. E não era suposto ser assim, para enorme preocupação, agora, da campanha de Donald Trump.

Em Milwaukee, o optimismo assentava numa fórmula simples: a noção de que Joe Biden era um adversário muito fragilizado e impopular, por um lado, e a ideia, promovida pelo campo republicano, de que os norte-americanos têm saudades de Trump e de como viviam o seu quotidiano consigo na Casa Branca.

Uma parte desta equação, parcialmente assente em meias-verdades ou em mentiras flagrantes sobre o legado de Trump em áreas como a economia e segurança, está por provar para lá do que dizem os números das sondagens. A outra parte da conta, relativa a Biden, deixou de existir.

Surpreendentemente, para um partido que durante os últimos anos foi traçando e carregando com tons escuros esse retrato de fragilidade do Presidente democrata, e que nele se foi apoiando para preparar o regresso de Trump, os republicanos aparentam nunca ter tido um plano concreto e sólido para enfrentar um cenário pós-Biden, que correria sempre o risco de resultar do sucesso desta estratégia de desgaste. Uma falha de imaginação ou um excesso de wishful thinking limitou os republicanos a duas hipóteses: ou Biden se arrastaria até novembro, para ser derrotado por Trump, ou então desistiria, mas os democratas travariam então uma guerra fratricida pela nomeação de um novo candidato, coxo de apoio e legitimidade.

Isso não aconteceu. Com um golpe de timing, esvaziando o balão mediático da tentativa de assassinato de Trump e da convenção republicana, Biden teve o rasgo de designar imediatamente uma sucessora, Kamala Harris, e de lhe emprestar o peso do apoio de um Presidente em funções, retirando tempo e oxigénio a qualquer candidatura alternativa. Biden, ou Pelosi e outras figuras de peso do universo democrata. Os historiadores responderão. Por agora, Biden diz que a decisão foi sua e Pelosi recusa o papel conspirador que a imprensa norte-americana lhe confere – uma “questão fastidiosa”, queixou-se a congressista veterana à imprensa estrangeira aqui em Chicago.

Até ao arranque da convenção democrata, e noutro exemplo da bolha racional e informativa estanque em que opera, o campo trumpista foi alimentando a fantasia de que Biden ainda poderia voltar atrás, ou que Harris soçobrasse, ou que Tim Walz, a sua escolha para “vice”, caísse por um qualquer escândalo cozinhado nas redes sociais. Também não aconteceu.

Ao invés, Chicago materializou o consenso em torno de Harris. Os casais Obama e Clinton emprestaram-lhe o apoio da aristocracia democrata – Michelle e Barack com discursos arrebatadores, na melhor noite da convenção, mas lúcidos, alertando para o perigo da complacência e do excesso de confiança e para a possibilidade de uma campanha suja do adversário.

Outros democratas com ambições presidenciais, como Josh Shapiro, Pete Buttigieg ou Gretchen Whitmer, ainda que em registo de corrida de treino para 2028 ou 2032, também fizeram bons discursos de apoio a Harris. Gavin Newsom, governador da Califórnia, foi chutado para uma intervenção de dois minutos durante a contagem de delegados, sugestiva de uma despromoção no partido, mas mantém-se para já como um soldado leal. E mostrou-se que os democratas têm hoje um banco de suplentes de tamanho considerável, ao contrário da incógnita sobre o que será o pós-Trump entre os republicanos.

A ala esquerda do partido revelou-se pragmática, aqui, tal como ao longo das últimas semanas. Alexandria Ocasio-Cortez foi chamada à mesa dos crescidos, ao palco principal da convenção, num reconhecimento da sua notável capacidade mobilizadora por parte do aparelho do partido. E mostrou que é possível levar a essa mesa temas caros aos progressistas, como a defesa de um cessar-fogo em Gaza, conciliando o espírito de protesto com uma postura institucional, apelando à mobilização em torno de Harris. O mesmo fez o independente Bernie Sanders, embora sem o mesmo fulgor de campanhas anteriores. Melhor esteve Elizabeth Warren, sua antiga concorrente no campo progressista, muito acarinhada na última noite da convenção. Ambos defenderam a agenda económica de Harris, que inclui agora o tema do acesso à habitação.

Gaza ameaçava descarrilar Chicago, precisamente pela esquerda, mas também aqui a convenção correu bem a Harris. Os protestos no exterior nunca atingiram a dimensão anunciada, sintoma do desfasamento entre o activismo online e a realidade terrena, ou da impopularidade de alguns discursos e métodos mais extremos. No interior, o bloco pró-palestiniano de delegados “descomprometidos” e dos seus simpatizantes bateu-se de forma digna pela inclusão de Gaza na agenda da convenção. Obtiveram uma vitória parcial com a realização de um painel de discussão e com a referência de Harris ao direito do povo palestiniano à sua segurança, dignidade e autodeterminação. Não terá sido com a ambição ou com os termos exigidos, mas alcançaram mais do que os activistas na rua, onde os elementos mais radicais falharam também outro objectivo: o de transformar Chicago num palco de motins semelhantes aos de 1968, então em torno da guerra no Vietname.

Ao apoio da aristocracia, do aparelho, de blocos progressistas, afro-americanos, de centristas moderados, Harris somou a presença de figuras republicanas presentes em Chicago, incluindo de antigos apoiantes e colaboradores de Trump que denunciam agora a transformação do seu partido num culto de personalidade afastado dos seus antigos valores.

É improvável que esta coligação diversa que sai de Chicago se tivesse formado sem que, do outro lado, houvesse Trump. Mas Trump existe, volta a apresentar um guião que não tem em 2024 a novidade de 2016, e soma agora um cadastro de caos. Há um esboço de uma maioria heterogénea que o rejeita, e que Harris tentará mobilizar até novembro com uma mensagem de contraste. As sondagens abrem neste momento dois caminhos para a Casa Branca para os democratas: a Norte, pelo Rust Belt, e a Sul, pelo Sun Belt – este último dado como improvável até à desistência Biden.

Tudo pode acontecer nas cerca de 11 semanas que restam até às eleições, e tudo o que parece fazer sentido no papel pode ser rasgado entretanto por dinâmicas intangíveis como um boato ou um meme no TikTok. Mas neste momento, visto a partir de Chicago, as “vibes” são boas para os democratas.

(Transcrito do PÚBLICO)

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