Apollonia* sempre teve um padrinho presente. Ele levava a afilhada para passear, trazia brinquedos e os pais podiam contar sempre com o dindo. “Anos se passaram, ela cresceu. Quando completou 15 anos, ele a chamou para passar o dia na roça. Ela foi, mas quando chegou lá, a bomba. O padrinho disse que estava apaixonado por ela. Que se a afilhada quisesse, lutaria por ela”, lembra a irmã de Apollonia. Desde então, nunca mais o dindo e a afilhada se viram. Pode parecer uma matéria de denúncia, mas não é. Ou não deveria ser. O tema é padrinhos, mas, para nossa surpresa, o que mais ouvimos foi “posso falar daqueles trastes, mas não coloque meu nome, pois não quero problema na família”. É sobre isso.
Um elo iniciado no batismo católico se tornou uma relação de amor, afeto, mas também de muito abandono, brigas e histórias cabulosas. Afinal, como se escolhe um padrinho? Ele é um compromisso de amizade entre os compadres ou a promessa de cuidados especiais com seus afilhados? Pela ótica da religião apostólica, nem uma coisa, nem outra. Ser padrinho é uma questão exclusivamente de doutrina e fé. Dindos e dindas fazem parte de um ritual do batismo que é estritamente católico. Justamente por isso, o primeiro critério na escolha dos dindos se torna bem óbvio: é preciso que eles façam parte do catolicismo. E que sejam praticantes.
Existem batizados em outras religiões, principalmente de origem cristã, mas a figura do padrinho é apenas no catolicismo. Contudo, a importância cultural dos padrinhos extrapolou os muros da igreja e se tornou uma forma de prestígio e status na sociedade. Junte isso ao fato de sermos um país de maioria católica. O último censo da religião divulgado pelo IBGE, em 2012, apontava que quase 87% da população faziam parte da religião do Papa Francisco. O que era para ser algo restrito da igreja, passou a ser uma forma de relação de apreço. O erro pode morar aí.
“São as convenções sociais que estão tirando o significado de ser padrinho. Ser padrinho de alguém é estar comprometido com a vida cristã daquela pessoa. Quando você olha a partir dessa realidade, a coisa muda completamente. Primeiro, é preciso olhar o que é o batismo cristão. Só então conseguiremos fazer uma boa escolha sobre os padrinhos”, disse o padre Manoel da Paixão, doutor em Liturgia e pároco da Paróquia Nossa Senhora dos Mares, em Salvador. Não é uma questão de segregar outras religiões, segundo o padre. A figura dos padrinhos é estritamente vinculada aos católicos, mas acabou virando uma cultura de todos, o que está errado para a doutrina apostólica. É como pensar num budista sendo ogã no candomblé.
“Nascemos com o pecado original, dado pelos primeiros pais, Adão e Eva. O batismo apaga esta primeira mancha. Desde cedo, a igreja confiou o cuidado das crianças não somente aos pais, mas também a um padrinho e uma madrinha, que se tornam ‘pais na fé’ [após o batismo]. Então, desde cedo orientamos que a escolha não seja pela amizade, mas pela fé na religião cristã. A missão dos padrinhos é manter seu afilhado dentro da palavra e ensinamentos de Deus. Por isso não faz sentido padrinhos de religiões diferentes. É mais presença, menos presentes”, completa o padre.
Resumindo, a figura do padrinho é de um tutor da celebração do sacramento de um cristão apostólico, que são três: Batismo, Crisma e Eucaristia. Se os pais da jornalista Juliana Lisboa tivessem seguido a cartilha, talvez não tivesse passado por perrengues.
“Meu pai tinha um grande amigo. Foi uma grande honra na época para meu pai dar sua primogênita para o grande amigo batizar. Acontece que, algum tempo depois, eles brigaram feio e cortaram relações. Hoje nem sei o nome dele direito. João alguma coisa, acho. Engraçado é que tenho uma lembrança dele, que tentou me presentear com uma Casa da Barbie. Meu pai, quando viu, mandou devolver o presente, foi na loja e comprou um igualzinho para mim. Se eu ver meu padrinho na rua, não reconheço”, lembra Juliana, que teve um destino parecido com a madrinha, amiga de sua mãe. Ambas se desentenderam também. “Hoje sou órfã de padrinhos”, brinca.
Diferente de Juliana, Sandra* até teve momentos providenciais com sua madrinha nos primeiros anos da infância. Ela tinha uma vida humilde e seu pai era violento, batia nela e na mãe.
“Minha madrinha era uma fuga da violência de meu pai e das dificuldades em casa. Ela tinha um poder aquisitivo, então me pegava sempre, me dava presentes, cuidava de mim, passava todo fim de semana na casa de praia dela. Eu não tinha dinheiro, então aquilo era algo fantástico. De repente, minha madrinha engravidou e teve um filho. Nunca mais me procurou. Isso doeu muito, principalmente para uma criança que sofria violência doméstica e tinha na madrinha alguns momentos de paz”, lembra.
A decepção foi tanta, que Sandra decidiu não batizar sua filha nos primeiros anos de vida. “Deixei ela crescer para escolher os padrinhos. Ela escolheu minha amiga, uma super dinda, apesar dela ainda não estar batizada”, completa a mãe. A dinda não é católica, diga-se de passagem. Mesmo assim, fará questão de batizá-la. “Quando ela tiver maior, seguirei os dogmas para fazer o batismo dela na igreja, sim. Minha filha terá Sandra como dinda também. Farei o batismo, mesmo não sendo católica”, disse a madrinha da filha de Sandra, Carmela*.
Apesar da doutrina direcionar para o lado cristão, é quase impossível manter as regras. É quase um elo familiar. “Ah, não teve jeito. Eu não queria, confesso. Meus compadres me chamaram para batizar, mesmo eu sendo do candomblé. Mas seria uma desfeita negar o convite, né? Acaba qualquer amizade, é impossível dizer não. Aceitei a contragosto, mas hoje mimo minha afilhada e daqui a pouco está aqui no terreiro comigo. Ninguém mandou me chamar”, brinca o religioso candomblecista, Vito*. “Só não bote meu nome. Se descobrem, vai ser briga”, completa.
A falta do compromisso cristão dos padrinhos também é uma dor de cabeça para a Igreja Católica. O Papa Francisco prega que não se restrinja o batismo por conta dos padrinhos não serem católicos, mas já existem sacerdotes dispensando a figura dos dindos e dindas pelo mundo. “É apenas uma figura formal e desprovida de significado. Tudo se tornou aparência. Havíamos chegado ao ponto que muitos padrinhos e madrinhas, durante a celebração, sequer comungavam”, declarou o bispo da província italiana de Mazara del Vallo, Dom Domenico Mogavero.
No início do ano, Mogavero surpreendeu os fiéis. Ele resolveu dispensar a figura dos padrinhos na sua diocese até 2024. Sua decisão está no site oficial do Vaticano, que não se opôs à decisão: “Padrinhos se tornaram figuras irrelevantes. Não se escolhe um homem ou uma mulher como ponto de referência por seu testemunho de fé”, declarou o bispo, que deu diretamente aos pais o papel de padrinhos no sacramento. “No passado, especialmente na Igreja antiga, era significativo. Hoje se tornou uma figura que criou problemas”, completa.
Batismo
O batismo é mais velho que o próprio cristianismo. Na bíblia, já existia o ritual no Velho Testamento, mas foi graças a João Batista que o batismo ganhou as características atuais, pelo menos em parte.
O primo de Jesus Cristo (e padrinho do Messias) fazia o papel de profeta e batizava pessoas no Rio Jordão, incluindo o filho de Deus. Contudo, segundo a igreja, João Batista apenas preparava o povo para a chegada do Messias. No caso, Jesus. Era, portanto, um batismo primitivo. O batismo das crianças se deu após a ressurreição de Cristo, que pediu, antes de subir ao céu, para seus apóstolos batizarem seus discípulos como uma forma de nova aliança. Se tornou, desde então, a porta de entrada para o cristianismo. Na igreja Católica, os padrinhos entram na história para serem os pais de fé e guardiões desta aliança. Em outras religiões cristãs, o batismo acontece em pessoas mais velhas, mas não existe a figura dos dindos (confira quadro ao lado).
Seja guardião da fé cristã ou não, na cultura brasileira o padrinho ganhou um significado muito maior. São, de fato, os segundos pais em todos os aspectos. Guardiões na falta dos pais. Theresa, apesar de católica, não é assídua. Porém, sua missão como madrinha tem um significado afetivo muito maior que uma guardiã da doutrina cristã. Sua afilhada, uma criança de nove anos, é fruto de uma relação extraconjugal do pai, um homem de certa idade. A família rejeita a criança e o pedido do pai foi além da fé. Foi um ato de desespero e preocupação.
“Um belo dia, sem jeito, ele me perguntou se eu e meu marido queríamos batizar sua filha, uma doce de criança. Aos prantos, ele disse que teme, após sua morte, o abandono da menina pela esposa e filhos, que a rejeitam pelo fato de ser fruto de traição. Ninguém queria batizá-la por conta disso, mas decidimos aceitar. A minha afilhada não tem culpa de nada. Não dá para enxergar o papel da madrinha apenas pela visão religiosa. No meu caso, me tornei uma espécie de mãe para ela. No final, é o que toda dinda precisa ser, independentemente da religião”, finaliza Theresa. E você, já ligou para seu afilhado hoje?
*As fontes pediram anonimato e tiveram os nomes trocados por personagens do filme The Godfather (O Padrinho, mais conhecido como O Poderoso Chefão).
Padrinho, afilhado e compadres
Padrinhos
A igreja sugere que sejam católicos. Precisam ter o mínimo de 16 anos. De preferência, ambos devem ter feito catequese, crisma e também que participem ativamente da rotina da Igreja, além de um curso de padrinhos obrigatório.
Afilhado A doutrina católica pede para que a pessoa seja batizada até os nove anos, pois o ciclo da sacristia ainda deverá ter a crisma e eucaristia.
Pais
Além de serem católicos, a igreja sugere que sejam casados no altar também, além do curso de batismo. No casamento, o padre já conversa sobre a escolha dos padrinhos dos futuros filhos.
Batismos, padrinhos e outras curiosidades
Padrinhos de casamento
Não se sabe onde começou a tradição dos padrinhos de casamento. Na Roma antiga, os padrinhos se vestiam iguais aos noivos para confundir espíritos ruins. Na igreja, a figura do padrinho no casamento surgiu após 1563, quando esta união passou a fazer parte do sacramento católico. Assim como no batismo, eles são protetores da fé cristã, mas dos noivos.
Batismo protestante
Em boa parte das religiões evangélicas, o ritual do batismo se assemelha ao batizado de Jesus Cristo no Rio Jordão. Apesar da idade mínima variar, o ideal é que a pessoa tenha consciência do batismo e seja escolha própria. Na Igreja Batista, o batismo só ocorre após pedido da pessoa. Não existe a figura dos padrinhos em nenhum deles. O pastor se encarrega de batizar seus cordeiros, ‘mergulhando’ os novos fiéis na água, como João Batista fez com Jesus.
Candomblé
Não existe a figura do padrinho, mas tem o tutor espiritual também. Quando criança, o adepto passa pelo ritual conhecido como ekomojade. O pai-de-santo consulta o orixá e dá um nome ao novo integrante da religião. Quando o iniciante é um adulto, é preciso passar por um ritual longo de isolamento e também ganha um pai ou uma mãe espiritual, que lhe dará um nome de axé e ensinará sobre suas obrigações diante do seu orixá.
Padrinhos afetivos
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) possui um apadrinhamento diferente. Não precisa ser católico, tampouco batizar. Você pode ser o ‘dindo’ de crianças órfãs, criando um vínculo afetivo, acompanhando o crescimento da criança e ajudando na sua vida escolar e profissional. Não é adoção. Procuramos o Poder Judiciário da Bahia para mais detalhes, mas não tivemos retorno até o fechamento da edição. Interessados podem procurar o TJ de sua região.