Uma mudança poderosa vai acontecer no próximo dia 2 de fevereiro de 2023, data que marca o centenário do presente a Iemanjá, rainha das águas, que tem sua história e divindade celebradas no mesmo dia. Depois de vários anos sendo retratada como uma figura de traços e pele branca, um grupo de ativistas e estudiosas do movimento negro propôs uma revisão histórica que tem um símbolo forte: é hora de fazer dela uma deusa preta. E assim será.
A partir da próxima quinta-feira, a Colônia de Pescadores Z-01, no bairro do Rio Vermelho, passa a abrigar uma escultura realista, que faz uma revisão histórica do padrão de beleza africano de Iemanjá. Foi essa a colônia que deu início à tradição do presente em 1923 e é uma das principais responsáveis por manter esse legado.
A própria colônia idealizou o projeto, em parceria com o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), também localizado em Salvador, que é dedicado à reunião e à valorização dos artefatos e dos registros da cultura afrodiaspórica no Brasil.
A nova escultura tem 1,40 metros de comprimento e personifica traços humanoides da beleza feminina africana, tendo sido confeccionada em estrutura metálica combinada com resina de vidro e de mármore. Assinada por Rodrigo Siqueira, a obra também tem em sua composição conchas e búzios naturais importados da Indonésia.
Presidente do Mucab, Cíntia Maria explica que é importante quebrar com algumas construções do chamado sincretismo religioso – ferramenta muito utilizada pela população de terreiros de Candomblé, associando Orixás a santos católicos, para se camuflarem do preconceito e repressão à sua fé.
Iemanjá, por exemplo, foi sincretizada com várias santas, como Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora dos Navegantes, ambas celebradas em 2 de fevereiro, e Virgem Maria, a mãe de Jesus. No Candomblé, ela é a mãe de grande parte dos Orixás.
“Por muito tempo, o sincretismo religioso foi utilizado como forma de resistência das figuras negras. Mas após a criminalização faz sentido esconder a identidade de uma divindade negra? A gente entende o porquê de ter existido, mas a quem serve a massificação da imagem de uma Iemanjá branca e negação de uma Iemanjá negra?”, questiona.
Ela afirma que, durante o período em que conviveu na Colônia, ouviu alguns questionamentos estranhando o porquê daquela nova imagem de Iemanjá estar ali.
Antropólogo baiano que colaborou com a pesquisa da escultura preta e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Vilson Caetano explica que a massificação da imagem de Iemanjá branca, representada em estátuas de gesso, porém, ocorre com o surgimento da Umbanda, no início do século passado.
A umbanda aprofundou o sincretismo no Brasil, unindo elementos do espiritismo, do cristianismo, do candomblé e também de culturas indígenas, sob o contexto de ‘desafricanização’ da cultura afrobrasileira.
Trazer negritude à imagem dessa deusa é dar direito a uma das orixás mais adoradas em Salvador de se mostrar como alguém de características semelhantes àqueles que confiam até próprias vidas a ela. Mais do que rainha do mar, Iemanjá forma, ao lado de Oxalá, um par mítico de criação: enquanto ele modela os corpos, ela cuida das cabeças – onde fica o nosso destino, caminhos e possibilidades. A escultura mostra que a Grande Mãe é preta. Isso tem força.